segunda-feira, 28 de abril de 2008

EURICO, O PRESBÍTERO


Resolvi postar em seções diferentes, vários trechos de uma linda obra da literatura universal: O Presbítero, de Alexandre Herculano, escrito pela primeira vez em 1843. Aliás, este mês de abril foi marcado para mim pela leitura de apenas livros daquele século.

Tive o prazer de ler a segunda parte do livro de Victor Hugo, "Os Miseráveis" (a primeira eu li no mês anterior, sugestão do Ricardo Gondim), cujo processo de escrita começou em 1824, terminando somente em 1853.

Depois li o delicioso livro "Inocência", do Visconde de Taunay, escrito também no século dezenove (1872). Conta a linda história de Cirino, jovem médico prático de interior que se apaixona perdidamente por Inocência, uma caboclinha com a pureza de uma criança e a beleza de uma mulher. Há momentos de ternura, suspense, graça e, como não deve faltar à uma obra clássica sobre o amor, alguma tristeza.

No livro "O Presbítero", Eurico é um homem rico, carismático e generoso. Apaixona-se por Hermengarda, filha de Fávila, Duque de Cantábria e irmã do célebre Pelágio. Sendo menos nobre que a família de sua amada, Eurico foi impedido de levar adiante esse amor, vendo sua Hermengarda ser-lhe tirada sem dó pelo pai.

A dor da perda foi tão severa em seu coração, que ele decide então ingressar no mundo religioso, tornando-se o presbítero de uma pequena vila, perto do mar. De coração generoso, além de ser um poeta vigoroso, ele passa a escrever sobre a dor do amor, as coisas da vida, sempre a partir da ótica cristã. São verdadeiros salmos que ele escreve, na solidão de suas frustrações e no amargor de sua realidade.

Agora, se isso aqui se propunha a ser apenas uma introdução aos seus escritos, imaginem vocês o que vêm por aí! Vou até esperar um pouco, depois de postar o primeiro, pra ver se vocês desejam mais uns trechos, ok?

I - O CORAÇÃO DO PRESBÍTERO

O presbítero Eurico era pastor da pobre paróquia de Cartéia. Descendente de uma antiga família bárbara, gardingo na corte de Vítiza, vivera os ligeiros dias da mocidade no meio dos deleites da opulenta Toletum. Rico, poderoso, gentil, o amor viera, apesar dissoquebrar a cadeia brilhante da sua felicidade. Namorado de Hermengarda, filha de Fávila, Duque de Cantábria, o seu amor fora infeliz. O orgulhoso Fávila não consentira que o menos nobre gardingo pusesse tão alto a mira de seus desejos.

Depois de mil provas de um afeto imenso, de uma paixão ardente, o moço guerreiro vira submergir todas as suas esperanças. Eurico era uma dessas almas ricas de sublime poesia a que o mundo deu o nome de imaginações desregradas, porque não é para o mundo entendê-las. Desventurado, o seu coração de fogo queimou-lhe o viço da existência ao despertar dos sonhos de amor que o tinham embalado. A ingratidão de Hermengarda, que parecera ceder sem resistência à vontade de seu pai, e o orgulho insultuoso do velho prócere deram em terra com aquele ânimo, que o aspecto da morte não seria capaz de abater.

A melancolia que o devorava, consumindo-lhe as forças, fê-lo cair em longa e perigosa enfermidade, e, quando a energia de uma constituição vigorosa o arrancou das bordas do túmulo, semelhante ao anjo rebelde, os toque belos e puros do seu gesto formoso e varonil transpareciam-lhe a custo através do véu de muda tristeza que lhe entenebrecia a fronte. O cedro pendia fulminado pelo fogo do céu.

Uma destas revoluções morais que as grandes crises produzem no espírito humano se operou então no moço Eurico. Educado na crença viva daqueles tempos, naturalmente religioso porque poeta, foi procurar abrigo e consolações aos pés de Aquele cujos braços estão sempre abertos para receber o desgraçado que neles vai buscar o derradeiro refúgio. Ao cabo das grandezas cortesãs o pobre gardingo encontrara a morte do espírito, o desengano do mundo.

Ao cabo da estreita senda da cruz acharia ele, porventura, a vida e o repouso íntimos? Era este o problema, no qual se resumia todo o seu futuro, que tentava resolver o pastor do pobre presbitério da velha cidade do Calpe.

A nova existência de Eurico tinha modificado, porém não destruído, o seu brilhante caráter. A maior das humanas desventuras, a viuvez do espírito, abrandara, pela melancolia, as impetuosas paixões do mancebo e apagara nos seus lábios o riso do contentamento, mas não pudera desvanecer no coração do sacerdote os generosos afetos do guerreiro, nem as inspirações do poeta. O templo havia santificado aqueles, moldando-os pelo Evangelho, e tornado mais solenes, alimentando-as com as imagens e sentimentos sublimes estampados nas páginas sacrossantas da Bíblia.

O entusiasmo e o amor tinham ressurgido naquele coração que parecera morto, mas transformados; o entusiasmo em entusiasmo pela virtude; o amor em amor dos homens. E a esperança? Oh, a esperança, essa é que não renascera!
APENAS CINCO SEGUNDOS
Allison da Silva Ambrósio

Cinco segundos. Talvez menos que isto. Foi o tempo que levei para viver uma experiência que, de tão negativa e desastrosa custou-me vários dias de reflexão e arrependimento. Dessas idiotices que fazemos por nos perceber mais espertos que a média, mais rápidos ou mais estrategistas que os tristemente definidos como medianos, outros, comuns.

Na realidade, seria apenas uma pequena manobra, em um trânsito fácil, lento, próximo ao de uma cidadela do interior. O carro dirigido por mim tinha força suficiente para executá-la a contento, antes mesmo de oferecer qualquer perigo. Foi o que pensei, ao consultar o espelho retrovisor, sem atentar para o veículo que já entrava atrás do meu, no sentido transversal.

Uma batida forte, rápida e, graças à Providência Divina, sem nenhum dano à integridade dos motoristas envolvidos. No outro carro, uma mulher aflita, atônita, desesperada por outros graves motivos, aos quais viria a agregar-se esse novo, por mim criado. Estava em diligência assustada, angustiada pelo filho que se achava atrás das grades. Com o marido trabalhando em outro Estado e a filha estudando naquele período da manhã, a jovem senhora encontrava-se sozinha para funcionar ao mesmo tempo como chefe de família, dona de casa, assistente de defesa, motorista e ainda fazer vezes de estagiária de advocacia.

- Moço, me ajude, por favor!- disse aterrorizada. - Não me abandone aqui! Não vá embora! Eu fiz tudo certinho. Esperei o senhor passar. Juro que não foi culpa minha! Lágrimas caudalosas jorravam de seus olhos, enquanto produzia frases entrecortadas pelas golfadas de ar que buscavam o seu peito.

Pedi perdão, reconheci meu erro, assumi a responsabilidade pelo acidente. Queria, sabe Deus o quanto, nunca estar vivendo aquela situação, aquele momento estanque, aqueles lapsos aflitivos de um acidente causado por minha imprudência. Tirei-a do carro, liguei para a polícia e solicitei entre os curiosos ao redor, alguém que providenciasse um pouco de água para a mulher agitada.

Depois de tudo resolvido, já mais calma e confiante, ela me explicou um pouco de seu sofrimento e da impossibilidade de estar parada ali naquele momento, com tantas providências para tomar. Compreendeu com a minha explicação que nenhum de nós gostaria de viver aquilo, embora fosse uma contingência possível aos que dirigem, aos que vivem. Viver sem sobressaltos eventuais só é possível àqueles que não se movem, que mal respiram, que não saem nunca do mesmo lugar.

Há que se ter mais cuidado, mais prudência. Um segundo olhar mais atento pode prevenir uma tragédia. Uma segunda reflexão pode evitar uma precipitação apaixonada e infeliz. O outro lado da face agredida, ao ser oferecido pela vítima, conforme o ensino de Cristo nos dará tempo para pensar antes de agir, antes de gerar um desfecho pior que o agravo recebido.

Cinco segundos. Quiçá, menos que cinco. Mas, tempo suficiente para alterar todo aquele dia, toda aquela semana e, ainda hoje, vários dias depois, me fazer pensar que tudo poderia ser evitado, se tão somente eu o tivesse gasto no essencial: pensar antes de agir.
A CÉU ABERTO
Allison da Silva Ambrósio


Por favor, não me pergunte agora
Por que ainda a minha alma chora
Pode ser a dor que não senti
Pode ser o amor que eu não vivi
Pode ser o medo do amanhã que aflora

Por favor, não cobre coerência
De quem não discerne a existência
Que desde o início faz questão
De mostrar que a última estação
Chega sempre sem acepção ou clemência

Não dá pra voltar e corrigir
Nem para esquecer, tentar fugir
Após tanto tempo ainda mentir
Não fará qualquer sentido

O passado só é por passar
Morte é renascer noutro lugar
E se o futuro ainda não bastar
Bem melhor não ter nascido

Por favor, só se preserve perto
Pois nem mesmo disto estou certo
Posso precisar da sua mão
Me ajudando na investigação
Ou pra carregar o meu caixão
A céu aberto.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

SERVIÇO DE APOIO AO CONSUMIDOR
(recebi via internet e achei interessante!)

Prezado Técnico,
Há um ano e meio troquei o programa [Noiva 1.0] pelo [Esposa 1.0] e verifiquei que o Programa gerou um aplicativo inesperado chamado [Bebê.exe] que ocupa muito espaço no HD. Por outro lado, o [Esposa1.0] se auto-instala em todos os outros programas e é carregado automaticamente assim que eu abro qualquer aplicativo. Aplicativos como [Cerveja_Com_A_Turma 0.3], [Noite_De_Farra 2.5] ou [ Domingo_De_Futebol 2.8], não funcionam mais, e o sistema trava assim que eu tento carregá-los novamente.

Além disso, de tempos em tempos um executável oculto (vírus) chamado [Sogra 1.0] aparece, encerrando Abruptamente a execução de um comando. Não consigo desinstalar este programa. Também não consigo diminuir o espaço ocupado pelo [Esposa 1.0] quando estou rodando meus aplicativos preferidos. Sem falar também que o programa [Sexo 5.1] sumiu do HD. Eu gostaria de voltar ao programa que eu usava antes, o [Noiva 1.0], mas o comando [ Uninstall.exe] não funciona adequadamente. Poderia ajudar-me? Por favor!
Ass: Usuário Arrependido

RESPOSTA: Prezado Usuário Arrependido,
Sua queixa é muito comum entre os usuários, mas é devido, na maioria das vezes, a um erro básico de conceito: muitos usuários migram de qualquer versão [Noiva 1.0] para [Esposa 1.0] com a falsa idéia de que se trata de um aplicativo de entretenimento e utilitário. Entretanto, o [Esposa 1.0] é muito mais do que isso: é um sistema operacional completo, criado para controlar todo o sistema! É quase impossível desinstalar [Esposa 1.0] e voltar para uma versão [Noiva 1.0], porque há aplicativos criados pelo [Esposa 1.0], como o [Filhos.dll], que não poderiam ser deletados, também ocupam muito espaço, e não rodam sem o [Esposa 1.0].

É impossível desinstalar, deletar ou esvaziar os arquivos dos programas depois de instalados. Você não pode voltar ao [Noiva 1.0] porque [Esposa 1.0] não foi programado para isso. Alguns usuários tentaram formatar todo o sistema para em seguida instalar a [Noiva Plus] ou o [Esposa2.0], mas passaram a ter mais problemas do que antes (leia os capítulos 'Cuidados Gerais' referente a ' Pensões Alimentícias' e 'Guarda das Crianças' do software [CASAMENTO].

Uma das melhores soluções é o comando [DESCULPAR.EXE /flores/all] assim que aparecer o menor problema ou se travar o micro. Evite o uso excessivo da tecla [ESC] (escapar). Para melhorar a rentabilidade do [Esposa1.0], aconselho o uso de [Flores 5.1], [ Férias_No_Caribe 3.2] ou [Jóias 3.3]. Os resultados são bem interessantes!

Mas nunca instale [Secretária_De_Minissaia 3.3], [Antiga_Namorada 2.6] ou [Turma_Do_Chopp 4.6], pois não funcionam depois de ter sido instalado o [Esposa 1.0] e podem causar problemas irreparáveis no sistema. Com relação ao programa [Sexo 5.1] esquece! Esse roda quando quer. Se você tivesse procurado o suporte técnico antes de instalar o [Esposa1.0] a orientação seria: NUNCA INSTALE O [ESPOSA 1.0] sem ter a certeza de que é capaz de usá-lo!

Agora.... Boa sorte!
PACIÊNCIA
Allison da Silva Ambrósio


Joga um Rei de Paus, um Valete de Ouro
Enquanto chega a conta do armazém
Esse Dez de Copas não cabe na trinca
A mulher espera outro neném
E o tempo passa, meu filho não passa
Nem naquela prova do ENEM
Paciência, paciência

No noticiário, um ladrão otário
Esqueceu ligado o celular
Pega aquele cinco, traz uma meiota
Com bastante boldo pra amargar
Já nasci cansado de ser enganado
De me debater até cansar
Paciência, paciência

Amanhã eu pulo às dez pras cinco
Se preciso eu durmo no portão
A vaga de vigia já é minha
Antes que outro esperto meta a mão
Só não é carteira assinada
O patrão precisa economizar
Embaralha as cartas novamente
Porque essa mão está devagar

Paciência, paciência...
APAGUE A LUZ DO DIA
Allison da Silva Ambrósio


Apague a luz do dia, está me irritando
A claridade fria que está fazendo
Traz um remédio que conforte a alma
Que cala e acalma o que está doendo

Suprima o sorriso, está incomodando
Essa alegria que está trazendo
Faz um lamento que enferme a alma
Que revele o trauma que estou tendo

Quem não cansou de viver de amor
Não sabe nada e nunca soube
Que a alma encerra os gritos roucos

Dos carinhos mil que são sempre poucos
E da solidão que provoca a dor
Por uma paixão que nunca houve
UMA CONVERSA SOBRE CASAMENTO*

Casamento. Quase todos os meus conhecidos tinham problemas nesse setor. Alguns tinham problema para entrar, outros para sair. Minha geração encarava o assunto como se fosse um crocodilo originário de algum brejo. Habituei-me a ir a casamentos, cumprimentar os noivos e ficar um tanto surpreso quando via o marido poucos anos depois em um restaurante em companhia de uma mulher mais jovem, que ele me apresentava como uma amiga. “Já me separei de Fulana”, acrescentava.

Por que temos tais problemas? Perguntei isso a Morrie. Tendo levado sete anos para pedir Janine em casamento, fiquei me indagando se as pessoas da minha geração não estariam sendo mais cuidadosas do que as que vieram antes, ou quem sabe mais egoístas?

- Bem, tenho pena da sua geração – ele disse. – Nesta cultura é muito importante estabelecer uma relação amorosa com alguém, porque de um modo geral a cultura não nos dá isso. Mas a rapaziada de hoje ou é muito egoísta para entrar numa relação amorosa verdadeira, ou corre para o casamento e seis meses depois se divorcia. Eles não sabem o que querem em um parceiro. Nem sabem quem eles são. E, sendo assim, como podem saber com quem estão se casando?

Charlotte e Morrie, que se conheceram quando estudantes estavam casados há quarenta e quatro anos. Eu os observo agora, quando ela lembra a ele a hora de tomar remédios, ou acaricia-lhe o pescoço, ou fala sobre um dos filhos. Trabalharam como uma equipe, muitas vezes não precisando mais do que um olhar silencioso para compreender o que o outro pensava. Charlotte é uma pessoa particular, própria, diferente de Morrie, mas sei quanto ele a respeita. Às vezes, quando conversávamos, ele dizia, “Charlotte pode não gostar se eu revelar isso”, e encerrava a conversa. Eram as únicas ocasiões em que ele se fechava.

- Uma coisa aprendi sobre o casamento – disse ele. – É como se nos submetêssemos a um teste. Descobrimos quem somos, quem a outra pessoa é e como nos entrosamos ou não.
- Existe algum processo para saber se um casamento vai dar certo?
- As coisas não são simples assim, Mitch – respondeu ele, sorrindo.
- Eu sei.
- Mesmo assim, há algumas normas aplicáveis a amor e casamento: se não respeitarmos a outra pessoa, vamos ter muitos problemas. Se não soubermos ceder aqui e ali, vamos ter muitos problemas. Se não conseguirmos falar abertamente sobre o que está acontecendo entre os dois, vamos ter muitos problemas. E se não tivermos um conjunto de valores em comum com a outra pessoa, vamos ter muitos problemas. Os valores devem ser semelhantes.
- Sabe qual é o mais importante desses valores, Mitch?
- Diga.
- Acreditar na importância do seu casamento.
Respirou fundo e fechou os olhos por um instante.
- Pessoalmente – suspirou com os olhos ainda fechados -, considero o casamento como uma coisa muito importante, e quem não o tentar não sabe o que está perdendo.
Encerrou o assunto citando o poema que tinha na conta de uma prece: “Amen-se ou pereçam”.

* Extraído do livro “A Última Grande Lição”, de Mitch Albom, um repórter esportivo que acompanhou passo a passo os últimos dias de vida de seu professor, transformando essa experiência em um belo livro.
PASSEANDO DE ZEBRINHA NA CAPITAL FEDERAL
Allison da Silva Ambrósio


Antes de o avião pousar em Brasília, eu pude observar aquela vegetação típica do cerrado, do planalto distrital, com sua terra vermelha seca e organização irritante. O diferencial desta vez foi o transporte que utilizei para ir ao encontro do meu cunhado, no final da avenida W3 norte – o microônibus da cidade, chamado carinhosamente de “zebrinha”.

Desde a aproximação do início da “Asa Sul”, parte que delimita o formato de avião que tem o Plano Piloto, minhas emoções emergiram densamente. A Escola Classe 316 Sul, onde estudei os primeiros anos e para onde ia a pé, desde a ponta da Avenida L2 Sul. O primeiro registro oficial de uma composição que fiz é uma paródia em homenagem àquela escola.

Pouco depois, o coletivo dobrou à direita, entrando na avenida W3 Sul. Palco de doces e delicadas lembranças, em seu início vê-se o Pão de Açúcar, já presente em minhas lembranças de menino, embora muito mais sujo hoje que há vinte e quatro anos, quando deixei a cidade. Atrás do ponto de ônibus instalou-se uma espécie de feira livre e permanente, onde os menos afortunados procuram salvar-se como podem, vendendo quinquilharias descartáveis e frutas suspeitas.

Avançando mais pela avenida, encontrei o prédio onde funcionava o Ristorante Cazebre 13, na época a mais tradicional casa de massas em Brasília. Cedera lugar a alguma coisa feia, que não consegui discernir o que era. Passei pelo posto de saúde 08, para onde fui com meus irmãos, receber vacina contra varíola. Eloine, apesar de ser minha irmã mais velha era sem dúvida alguma a mais medrosa. Esboçava certa coragem, na medida em que chegávamos ao posto de saúde. Porém, bastavam faltarem duas ou três crianças a sua frente para se dirigir novamente ao fim da fila. No final foi preciso segurá-la para ser vacinada, ou melhor, para receber aquelas pequenas cutucadas no braço direito, o que não doía absolutamente nada, como no final constatou.

Sorri comigo mesmo, deleitando-me naquela lembrança pitoresca. Procurei por magazines famosos da época, mas não os encontrei. Aqui e ali, perdido entre outras marcas recentes é que algum letreiro me empurrava de volta ao passado, já que palmilhei por muito tempo aquelas calçadas, como menor aprendiz, office boy e escrevente auxiliar, minha última atividade profissional antes da maioridade.

E logo estava diante do Cartório do Primeiro Ofício de Notas Maurício de Lemos, agora um prédio exuberante de esquina, bem diferente das instalações onde trabalhei, primeiro nas máquinas copiadoras da frente da loja, depois como escrevente auxiliar de dois escreventes juramentados – Vagner e Rui.

Palco de muitas travessuras, o Cartório também contribuiu para minha nostalgia no banco da zebrinha. Minhas idas até aos clientes mais abonados, que obrigavam o Cartório a se deslocar e não eles. Lembrei de Dona Odila Campos Maia, nome jamais esquecido, a quem fui atender no Heron Brasília Hotel. Levei os livros cartoriais, volumes enormes, negros e pesados, para que ela assinasse a mais algumas escrituras definitivas, de novas propriedades adquiridas na capital federal.
“Allison meu filho”, disse ela, “sei que o dinheiro é a raiz de todos os males. Porém, prefiro sofrer dentro de um Jaguar que num ônibus circular lotado”. Como em narrações de Futebol, essa frase era a senha para se tragar mais um gole de Contreau, que ela dispunha próximo a seu braço, entre uma assinatura e outra.

Já se aproximando do final da avenida W3 Sul estava o hospital Sarah Kubitschek, último prédio antes do setor comercial sul, onde trabalhei em vários escritórios de advocacia. O cenário estava pouco alterado. Muito sujo, apesar de tudo.

Logo depois, o microônibus mergulhou sob os viadutos que entremeiam as asas do Plano Piloto, indo à direção da Asa Norte e outra série de lembranças igualmente doces. O edifício Brasília Rádio Center, ao lado da Rede Globo Brasília à esquerda. À direita pude perceber o curso alfa, onde estudei por um semestre apenas e sai, por causa de um boato de que o mesmo não seria reconhecido pelo MEC. Soube pouco depois que era mentira. Embarcar nessa história custou-me quase vinte anos de formação.

Procurei o escritório da Ferralumi, empresa de um grande amigo meu, o já falecido Jesiel Pereira Raimundo. Perto dali havia uma pastelaria, aonde íamos aos fins de tardes saborear pastéis de queijo, acompanhados de um suco de ameixas delicioso que eles serviam. Eu dirigia uma kombi da empresa, indo buscar os perfis de alumínio comprados no setor de indústria. Voltava escutando no rádio ao programa do Néri da Silveira, “Ao Cair da Tarde”.

Já que comecei, irei terminar. Tratava-se de um programa desses melosos, de música romântica e leitura de cartas tristes. “Sabe Néri, minha namorada não me quer mais, só porque eu sou pobre!”, queixa-se um servente, com o coração partido. “Como vou contar a ele que já fui casada, Néri?”, sofre uma menina do subúrbio, com medo de perder seu novo amor. E lá vou eu, com seiscentos quilos de alumínio na bagagem, meia volta de folga na direção da kombi e o coração amolecido com as músicas dos “The Fevers” e Nelson Ned!

Descendo pela quadra 506 em direção a 512, quase senti novamente o perfume da Sandy, menina linda que o meu amigo Wesley queria namorar. Por isso me fez acompanhá-los, a pé, até à igreja que ficava na 313 norte. Só para ter mais tempo ao lado dela! Enquanto vencíamos a primeira etapa da viagem, surge do nada, ou talvez do quinto dos infernos, um menino em uma mobilete que atendia pelo nome de Eduardo. “Eduardo, uh, uh! Dá uma carona... pra gente?”. Pouco tempo depois, lá ia a Sandy na garupa do moleque, que ria gostosamente dos dois trouxas que ficaram para trás!

Nem notei quando a zebrinha chegou ao ponto que eu deveria descer. Não fosse pela motorista e eu passaria direto, como fiz muitas vezes ao voltar dormindo para casa! Não sei se estou ficando velho e, talvez por causa disso, as lembranças do meu passado estejam com cores assim tão vivas. Mas, sinto uma necessidade enorme de voltar a esses pontos da minha vida. Talvez, para dizer que estive ali, que tenho raízes profundas naquele lugar.

Mesmo morando onze anos em Brasília e depois vinte e quatro anos fora dela, foi a primeira vez que andei de zebrinha na Capital Federal. Se eu soubesse o quanto era bom...

quinta-feira, 17 de abril de 2008

A PALAVRA

Pablo Neruda

...Sim, senhor, tudo o que queira, mas são as palavras as que cantam, as que sobem e baixam... Posterno-me diante delas... Amo-as, uno-me a elas, persigo-as,mordo-as, derreto-as... Amo tanto as palavras... As inesperadas... As que avidamente a gente espera, espreita até que de repente caem... Vocábulos amados... Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho... Persigo algumas palavras... São tão belas que quero coloca-las todas em meu poema... Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas...

E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as... Deixo-as como estalactites em meu poema, como pedacinhos de pedra polida, como carvão, como restos de um naufrágio, presentes da onda... Tudo está na palavra... Uma idéia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que a obedeceu... Têm sombra, transparência, peso, plumas, pêlos, têm tudo o que se lhes foi agregando de tanto vagar pelo rio, de tanto transmigrar de pátria, de tanto ser raízes...

São antiqüíssimas e recentíssimas. Vivem no féretro escondido e na flor apenas desabrochada... Que bom idioma o meu, que boa língua herdamos dos conquistadores torvos... Estes andavam a passos largos pelas tremendas cordilheiras, pelas Américas encrespadas, buscando batatas, butifarras, feijõezinhos, tabaco negro, ouro, milho, ovos, frutos, com aquele apetite voraz que nunca mais se viu no mundo... Tragavam tudo: religiões, pirâmides, tribos, idolatrias iguais às que eles traziam em suas grandes bolsas... Por onde passavam a terra ficava arrasada...

Mas caíam das botas dos bárbaros, das barbas, dos elmos, das ferraduras, como pedrinhas, as palavras luminosas que permaneceram aqui resplandecentes... o idioma. Saímos perdendo... Saímos ganhando... Levaram o ouro e nos deixaram o ouro... Levaram tudo... e nos deixaram tudo... Deixaram-nos as palavras.

(“Confesso que Vivi” – Ed. Rio de Janeiro: Difel, 1980. p. 51-2)
QUEM SOMOS?

Não somos apenas o que pensamos ser. Somos mais; somos também, o que lembramos e aquilo de que nos esquecemos; somos as palavras que trocamos, os enganos que cometemos, os impulsos a que cedemos,“sem querer“.

Sigmund Freud

terça-feira, 15 de abril de 2008

OS MISERÁVEIS
Allison S. Ambrósio




Ele dorme.
E embora a sorte lhe fora bem estranha,
Ele vivia.
Morreu quando não teve mais o seu anjo;
A coisa simplesmente chegou,
De moto próprio.
Como a noite que chega,
Quando o dia se vai.

Com essa pequena poesia termina uma das mais lindas peças literárias que já tive o privilégio de ler: “Os Miseráveis”, de Victor Hugo (Ed. Cosac & Naify/ Casa da Palavra). Por vários dias vi-me envolvido na trama que, apesar de escrita no fim do século dezenove conseguiu me enlevar, assustar e extasiar, levando-me às lágrimas em seu desfecho.

O bispo de Digne, modelo ideal de um homem de Deus, que levava seu compromisso com Deus e com o próximo até as últimas conseqüências. Um homem cuja vida gritava de forma ensurdecedora, ainda que caminhasse em reflexivo silêncio. Não abriu mão do sustento oferecido pelo Governo Francês pela simples razão de querer gasta-lo com mais remédios para os pacientes de seu humilde hospital.

O encontro desse anjo com Jean Valjean, uma alma adoecida pelo ódio e desejo de vingança, que fora preso e amargara dezenove anos acorrentado nas galés, por ter cometido o crime de roubar alguns pães para alimentar os seus sobrinhos famintos. Ao cumprir sua pena, descobre que havia mais sofrimento reservado para si. Um “forçado”, termo dado àqueles que haviam sido presos, era menos que nada para a hipócrita sociedade daquela época.

Respirando ainda esses ares infernais foi que Jean Valjean encontrou o Bispo que, sem se importar com sua história, seu passado marcado de ódio e vingança, lhe deu abrigo, comida e, acima de tudo, um amor desconcertante. Começa aí sua conversão.

As cores da transformação, primeiro do próprio Bispo e depois de Jean Valjean são tão fortes, tão brilhantes e tão verossímeis, que fui capaz de sentir como se eles verdadeiramente tivessem existido. Talvez seja isto o que faz um clássico tornar-se um clássico – a capacidade de reproduzir no papel todas as nuanças e idiossincrasias da mente humana.

Impressionei-me com a inflexibilidade dogmática de Javert, um inspetor de polícia que acreditava ser impossível a um forçado a própria restauração. A ingenuidade da linda, sincera e sonhadora Fantine que, ao cair nas mãos de um bom vivant irresponsável, se vê abandonada, grávida e sozinha no mundo. A pequena Cosette, aparentemente condenada a uma vida de trabalho escravo sem trégua, sem carinho e sem algo para chamar de seu.

Marius, um jovem idealista que se vê diante de uma promessa a cumprir, lutando contra o asco de perceber que o beneficiário de tal promessa é um bandido frio, inescrupuloso e abjeto chamado Thernadiér. O pequeno Gravouche, um menino que conseguiu se tornar adorável, mesmo após ser abandonado pela mãe, ignorado pelo pai e condenado a viver sob a mira das botas dos passantes, a crueldade da polícia e a intolerância das pessoas com as crianças de rua. Ele é poeta, é divertido. Demonstra ser emocionalmente inteligente, quando consgue rir de seu próprio infortúnio, cantarolando canções populares enquanto recolhia cartuchos de soldados mortos, sob a chuva de balas do exército francês.

Cheguei à conclusão de que o livro mexeu muito comigo, por conseguir retratar com tons incômodos as diversas nuanças de minha própria história. Encontro crueldade em minhas ações reprováveis, tal qual os Thernadiér a maltratar a criança que lhes estava em poder. Por outro lado, sinto-me impelido a fazer o bem a alguém, ainda que tal atitude me custe muito caro em suas conseqüências, assim como o atormentado Jean Valjean.

Encontro também um pouco do intransigente Javert, que ao perceber a incoerência do que defendia resolveu dar outro ruma à sua vida, assim como Eponine, cuja aparência inicial é de uma pequena lady e seu final é como uma maltrapilha esquelética, prostituída e apaixonada platonicamente por um membro da sociedade parisiense.

Há de tudo em nós. Generosidade e covardia, apatia e solidariedade, vícios e virtudes, forças inacreditáveis e fracassos retumbantes. Foi quando me dei conta de que o livro pode até ser um clássico. Porém, nós os que vivemos é que o somos. Com muito mais louvor e autoridade que eles. Sugiro a todos os que ainda não leram este romance que façam esse favor a si mesmos. Garanto que depois irão me agradecer.
O TIRO QUE SAIU PELA CULATRA!
Allison S. Ambrósio


Dizem por aí que a curiosidade mata. Nem sempre. Mas pode assustar. E como! Foi no sábado de manhã, no centro da cidade, onde eu procurava um cartãozinho para a Jacqueline. Não queria deixar seu aniversário passar em branco.
Gosto da língua inglesa. Acho sonora, suave e gostosa de falar. Sendo assim, saio lendo tudo o que consigo em inglês e que se coloque em minha frente. Nomes de lojas, bandas de rock, cartazes de shows, camisetas. Tento decifrar expressões idiomáticas, que são super interessantes e por aí vai. Até em meu próprio nome dei um jeito de encontrar uma expressão idiomática inglesa: All is on (está tudo em cima, ou, está tudo bem comigo!).
Ele vinha em sentido contrário. Gordo, feio, com óculos de grau do tipo fundo de garrafa. Diria tratar-se de uma pequena escapadela estética da mãe natureza (ok, todos são criaturas de Deus, embora alguns sejam mais feios que outros!). No começo não notei sua aparência, por estar concentrado, num daqueles lapsos de pensamento, no que estava escrito em sua camiseta que parecia um outdoor em função daquele “corpitcho”: I’m waiting for a girl like you*.
Com o susto que levei, ergui rapidamente os olhos a tempo de observá-lo, com um sorriso sem graça, de alguém que fora pego fazendo alguma travessura. Não falei, mas pensei imediatamente: “Tô Fora!”. Foi tudo em fração de segundos. Explodimos numa gostosa gargalhada no meio da rua. Ainda avancei umas duas quadras, rindo muito daquela piada pronta.
Tenho certeza que o plano do bonitão, ao colocar aquela camiseta, nem passava perto de uma possibilidade desastrosa dessas; um negão que sabia ler em inglês! Assim, a maioria dos planos que fazemos não considera as variáveis absolutamente possíveis de alguma coisa não dar certo.
Famoso jogador de futebol, Mané Garrincha se notabilizou por uma pergunta simples, inocente e sem malícia que fez, antes de um dos jogos da seleção brasileira. Depois de seu técnico mostrar à equipe sua estratégia de jogo, ao notar todos os movimentos fantásticos que lhe foi exigido, Garrincha perguntou: “mas o senhor já combinou com os adversários?”. Para fazer tudo o que o técnico queria, o jogador percebeu ser possível apenas se o time adversário ficasse plantado em campo, sem esboçar qualquer reação de defesa.
Colocar-se na posição do outro é um dos melhores exercícios que poderíamos fazer para evitar maiores constrangimentos. As coisas não são lineares, previsíveis e tranqüilas o tempo todo. Até um elogio que se pretende pode virar uma agressão. Uma conversa banal e irrelevante pode terminar em discussão e uma saída rapidinha para comprar um pão pode terminar em um boletim de ocorrência de uma delegacia da cidade.
O bom da vida é justamente essa aleatoriedade, esse formidável e desconhecido minuto seguinte. Nunca sabemos o que vem pela frente e é justamente isto que faz o nosso dia a dia emocionante. E quanto ao rapaz da camiseta? Continua esperando...


*tradução: “Estou esperando por uma garota parecida com você”. É ruim, hein?

quinta-feira, 10 de abril de 2008


JESUS ESTÁ MEXENDO!

Eu liderava uma comunidade cristã em Fortaleza, bairro Mucuripe. Betesda Volta da Jurema, na avenida Abolição, no Ceará. Após uma reunião bastante animada, depois de haver cumprimentado as pessoas que saíam do prédio, a professora Alessandra veio me dizer cheia de alegria: O Leozinho (meu filho, quatro anos de idade na época) fez uma oração hoje, lá na salinha das crianças, pedindo a Jesus para ser Senhor em sua vida!

Lembro-me de ficar emocionado com aquele testemunho, lembrando-me que fiz o mesmo aos seis aninhos de idade, dois a mais que ele, portanto. Foi inevitável pensar que os filhos vêm para superar seus pais, inclusive no tempo.

Ao chegar em casa, Jackie o prepara para dormir, como já de costume. Dentes escovados, pijama, beijo de boa-noite no pai que ainda está assistindo um dos intermináveis filmes do Charles Bronson (Desejo de Matar CLXXVII) e, finalmente, o pequeno diálogo:

- Leo, a professora disse que você entregou seu coraçãozinho a Jesus hoje, não foi?
- Foi sim, mamãe! - responde entusiasmado, o projeto de cristão.

Jacqueline abriu um sorriso satisfeito, pensando na decisão do filho que, dali a alguns meses ganharia uma irmazinha. Grávida de sete meses, habituara-se a colocar a pequena mão do menino sobre sua barriga, para sentir os movimentos da Julie, talvez praticando alguns passos de Street Dance! Afinal, são meus filhos, né? Não se contentam em ser comuns!

- E agora, Leo? Onde é que Jesus está morando agora? - Pergunta a mãe, antes da última oração do dia.
- Aqui! - O Leo pôs a mão sobre o peito, indicando seu pequeno coração. Ato contínuo, arregalou os olhos e gritou assustado para a mãe, depois de sentir os próprios batimentos cardíacos:

- Mãe! Jesus está mexendo! Jesus está mexendo!

POLITICAMENTE INCORRETO!
Allison da Silva Ambrósio

Estávamos em família, na sala de casa. Jackie, eu e os meninos nos preparávamos para mais um encontro do projeto CRISTO EM CASA, que consiste em uma leitura que fazemos de um dos provérbios do Rei Salomão na Biblia Sagrada.

A dinâmica é a seguinte: na terça feira, mais ou menos às sete e meia desligamos a TV, o rádio e os celurares e nos reunimos na sala. Abrimos no livro dos Provérbios e procuramos o capítulo correspondente ao dia em que estamos. Dia oito, Provérbios capítulo oito, etc. Todos lêem dois ou três versículos, inclusive a Camile que, aos seis anos de idade, já consegue certa desenvoltura na leitura.

Depois disso, cada um escolhe um versículo que se encaixe melhor com seu estado de espírito, que lhe tenha chamado a atenção ou que lhe salve logo de tal incumbência! No dia em questão estávamos lendo uma linda peça literária, chamada "O Banquete da Sabedoria". Nela, o rei descreve a sabedoria como uma pessoa que se prepara, arruma a casa, se perfuma e sai pela rua afora, buscando, convidando os homens tolos e sem juízo para virem se banquetear com ela.

Em dado momento, por não ser respondida ou sentir-se desprezada por eles, a sabedoria então afirma que rirá de todos os que forem atingidos pela calamidade, pelo infortúnio, por aquelas crises que ocorrem na vida e que seriam facilmente debeladas, caso a tivessem ouvido.

- É Deus que está falando isso? - perguntou a Julie, depois de sentir-se incomodada com a vingança fria e incompassiva da sabedoria.
- Não, minha filha, é a sabedoria! - respondo.
- Que sabedoriazinha chata, né? O sujeito já está mal e ela ainda quer espezinhar!

Já estava meio desconcertado com essa inferência, explicando que aquilo era apenas como uma peça literária, um poema no qual o autor coloca características humanas em uma virtude para proclamar sua importância, quando a Camile entra no debate:

- Mas, pai, na semana passada a gente aprendeu que não devíamos devolver com o mal as coisas más que as pessoas fizessem com a gente? Não é para fazer coisas boas, mesmo quando nos fizerem coisas más? Então essa sabedoria aí está muito errada!
- Mas é apenas uma forma que Salomão achou para mostrar como é bom buscar a sabedoria - tentei livrar a barra do milenarmente falecido.
- Mas esse rei aí está errado do mesmo jeito!

Nada mais cabendo no momento, levantei-me de onde estava e fui cumprimentar minha filha que, como a irmã, havia compreendido bem o princípio de o bem superar o mal. Fiquei apenas com dó do Salomão. Nem mesmo o homem considerado o mais sábio do mundo consegue dobrar um raciocínio rápido e descompromissado de uma mente infantil!

Para mim, ele pode até ser rei. Para elas, mesmo assim, ele está politicamente incorreto!
NO AMOR E NA GUERRA DA VIDA!
Allison da Silva Ambrósio

O que esperar de um garoto negro e franzino, pobre quase ao nível Biafra, número cinco na escala dos oito filhos oficiais do pai? Meu diferencial era a desenvoltura e o talento para música. Não conformado com uma situação socialmente frágil no contexto brasileiro, fui à luta.

Aprendi a ser independente quanto aos muitos negócios nos quais me meti. Depois de me tornar vendedor de sorvetes a dez centavos, pelas ruas de Santo André, em São Paulo aos seis anos de idade, todo o resto se tornaria fácil: engraxate, menor aprendiz, office-boy, escrevente auxiliar, vendedor de ilusões (também embarquei no barco da AM WAY!) até ter meu próprio negócio: uma empresa de cobrança. Logo faliu, pelo tanto que foi cobrada!

No amor, tentando tal sorte desde os nove anos (transcrevi para uma garota de sete algumas frases do Roberto CArlos: "Eu tenho tanto pra lhe falar..."; é meu primeiro registro mental sobre o assunto), depois de tantos foras que levei desenvolvi uma técnica que transcendeu as questões do coração.

Simples: quando eu me interessava por uma garota, geralmente muito além das expectativas que todos possuiam a meu respeito e, para não me frustrar muito com as respostas previsiveis, decidi raciocinar que o "não" provável eu já possuía. O "sim" insólito e incrível até para mim, depois de me emudecer de assombro inicialmente iria me deixar feliz por ter tentado.

Não me espezinhem além do necessário, querendo saber qual das respostas acima foram as mais recorrentes nas minhas investidas! Porém, observei que saía menos ferido de cada uma delas. Tive poucos relacionamentos para valer na vida, mas não me permiti ferir com o que não consegui.

"Quer namorar comigo?", "NÃO!", "grande coisa... Eu já sabia!". E assim tocava a vida, com alguma integridade emocional no meu peito pré-adolescente. Sabendo da possibilidade de não funiconar eu não me espantava. Sendo assim, não me frustrava, a ponto de lamentar a vida, a sorte, o amor, etc.

Quando era o contrário que ocorria, ou seja, a resposta era "sim", geralmente eu travava. Por não ter muito assunto ou por uma súbita crise de constrangimento que me tomava de assalto.

O realmente quero dizer nas entrelinhas dessas tentativas frustradas de um Dom Juan de Marco Jamaicano é que, invariavelmente, já entramos no ringue da vida derrotados, esperando o soar do gongo do fim da luta, para um assalto que mal começou!

Como a hiena do desenho animado, parecemos uma porta enferrujada, revolvendo-se em seus gonzos a dizer: "ó vida, ó dor, ó sofrimento!", quando poderíamos nos surpreender, apenas olhando nosso desafio sob outra motivação e perspectiva.

Foi numa música do Chico que eu ouvi que até o copo vazio está cheio... De ar! Li em outro lugar qualquer que o pessimista, ao ver meio copo d'água observa que o mesmo está meio vazio. O otimista vê o mesmo copo e, além de beber a água e matar a sede, observa que o mesmo estava MEIO CHEIO!

Vamos combinar então? Temos sempre duas maneiras de encarar um mesmo desafio. Por que já decidir a perda sem nem ao menos tentar vencer? Por que jogar a toalha que poderia muito bem ser balançada de felicidade no final, após a sua vitória? Quando a barriga gelar, as mãos suarem, o medo chegar sem ser convidado e as pernas tremerem, lembrem de mim e das minhas tentativas infantis de parecer adulto: Se não for funcionar, antecipe-se: "Grande coisa! Eu já sabia que poderia ter sido assim!"

Agora, se der certo, SURPREENDA-SE E COMEMORE! VALEU A TENTATIVA!
SE TEU HERÓI CAIR
Allison da Silva Ambrósio

O teu herói caiu
O teu irmão falhou
O amigo fugiu
A força te deixou...

Se a luta não cessar
E a dor continuar
Se em vão tentar vencer
Quase a cair...

Se o teu herói cair
Se o teu irmão falhar
Se o amigo fugir
E a força te deixar...

Lembra do Cristo
Que por ti se deu
E te espera crer
Pra revelar- te um céu...

Creia pois no Senhor
Que pode encher de amor
E firme assim, feliz serás...

Se teu herói cair...

sábado, 5 de abril de 2008

O AMOR
Allison S. Ambrósio

O amor, santo mistério
O amor não fica velho
Penetra e invade a alma
Suave calma
Celeste dádiva

O amor tem mil matizes
Profundas suas raízes
Penetra e regenera
Suporta e espera
Não se exaspera
O amor...

Ao nascer no dia o sol
O amor nasce também
Ao brilho da estrela no céu
O amor rebrilha além...

O amor tem mil matizes
Profundas suas raízes
Penetra e regenera
Suporta e es[era
Não se exaspera
O amor...
A ÚLTIMA UTOPIA

Cidadãos, já imaginaram o futuro? As ruas das cidades inundadas de luz, ramos verdes à soleira das portas, as nações irmãs, os homens justos, os velhinhos abençoando as crianças, o passado amando o presente, os pensadores em plena liberdade os crentes em plena igualdade, o céu por religião, Deus Sacerdote direto, a consciência humana transformada em altar, não mais ódios, a fraternidade entre a escola e a oficina, por penalidade e por recompensa a notoriedade, trabalho para todos, paz para todos, direito para todos, não mais sangue derramado, não mais guerras, as mães felizes!

Domar a matéria, eis o primeiro passo; realizar o ideal, eis o segundo. Reflitam sobre o que o progresso já fez. Outrora, as primeiras raças humanas viam com terror passar-lhes diante dos olhos a hidra que soprava sobre as águas, o dragão que vomitava fogo, o grifo, monstro do ar com asas de águia e garras de tigre; animais assustadores e superiores ao homem. Este, contudo, armou-lhes laços, os laços sagrados da inteligência, e acabou por dominar os monstros.

Dominamos a hidra, agora chama-se vapor; dominamos o dragão, agora chama-se locomotiva; estamos prestes a dominar o grifo, já o temos em nosso poder, agora chama-se balão. No dia em que essa obra digna de Prometeu estiver terminada, quando o homem tiver atrelado definitivamente à própria vontade a tríplice quimera da Antiguidade, a hidra, o dragão e o grifo, ele será senhor da água, do fogo e do ar, e será para o resto da criação dotada de alma o que os antigos deuses foram outrora para ele. Coragem e avante!

Cidadãos, para onde iremos? Para a ciência transformada em governo, para a força das coisas transformada na única força acessível a todos, para a lei natural recebendo sanção e penalidade em si mesma e promulgando-se pela evidência, para uma aurora de verdade que corresponde à aurora do dia. Caminhamos para a união dos povos, para a unidade do gênero humano. Chega de ficções e de parasitas. O real governado pela verdade, eis o nosso objetivo.

Parte do discurso de Enjolras, personagem do livro “Os Miseráveis”, de Victor Hugo, pouco antes de morrer pela instalação da República Francesa.