domingo, 11 de maio de 2008

CANTAR PARA CONTAR
Allison da Silva Ambrósio

Anápolis, Goiás. O ano era 1980. Mais ou menos meio dia, do que seria o último no congresso da juventude Batista Nacional. Foi maravilhoso. Minha canção fora escolhida como hino oficial aquele ano. “Ergue a tua voz, o mundo ouvirá/ Que Deus é a paz e quer salvar/ Onde Ele mandar, ergue a tua voz/ Se Deus é por nós, quem nos deterá?”.Além de todos os amigos que vieram comigo no ônibus fretado pela igreja, o Jesiel veio dirigindo o seu Opala branco neve, acompanhado do inseparável amigo Zuca, do Bia e do Celso Azevedo.

Exceto o Bia, com quem eu não tinha um relacionamento muito aprofundado, pela ordem de amizade e caminhada viriam o Jesiel, o Zuca e o Celso.Éramos muito amigos, sendo uns mais chegados que outros. Jesiel fazia uma espécie de ponte entre todos nós, embora eu e o Zuca tivéssemos uma agenda à parte. Celso Azevedo era meu amigo musical, uma vez que sempre gostei de ouvi-lo tocar o seu violão Folk 12, com uma das cordas “G” oitavadas. Os acordes que o Celso fazia eram celestiais, enriquecedores e de muito bom gosto. Éramos amigos o suficiente para que eu acreditasse que daria certo um plano que estava concebendo em meu coração.

É que numa igreja de Anápolis haveria a apresentação do Oratório O Messias, de Haendel. O coral e a orquestra de lá eram competentes o suficiente para executar essa obra universal belíssima. Claro que eu queria ouvir! Procurei o Jesiel, o dono do carro, para tentar acomodar as coisas. Um Opala comporta tranquilamente cinco pessoas. Carro confortável e macio, nem sentiria a diferença em carregar um passageiro como eu, pesando apenas sessenta e três quilos (bons tempos aqueles...).

Jesiel concordou, principalmente por saber da minha paixão por grandes apresentações de corais. Os motivos dele eram bem outros. As garotas da igreja eram bem engraçadinhas e os meninos estavam muito desejosos de ouvir um... oratório! Com o Zuca não haveria problema. O Bia, irmão mais novo do Jesiel, naquele tempo não tinha muito “querer”, como diria minha mãe. Tudo correu bem, até chegar no Celso.Acostumado a conforto Celso bateu o pé, não querendo que eu fosse com eles. Alegou que a viagem seria incômoda (afinal, cento e dez quilômetros, a cento e vinte por hora é algo terrível!), que ele não gostava de viajar apertado e coisas assim. Se fosse para eu ir junto, ele preferiria voltar no ônibus da igreja.

Depois de argumentações insistentes sem resultado e, apesar de saber que tudo era apenas egoísmo infantil do Celso, agradeci ao Jesiel pela boa intenção da carona, mas decidi que não valeria à pena. Depois, se alguém tivesse que voltar no ônibus em meu lugar, eu ficaria tão constrangido que estragaria toda a viagem.Despedi-me deles e os observei se afastando, em direção ao centro da cidade, enquanto o motorista do ônibus guardava as últimas malas. Quando a porta do coletivo se fechou, a raiva que eu sentia pelo Celso era tamanha, que questionei até os motivos de ter feito aquela viagem. Como poderia sair de um congresso que se propunha espiritual, com aquela vontade louca de esganar alguém?

Dirigi–me às últimas poltronas. Havia um casal de namorados, que provavelmente tinham começado o relacionamento no congresso. Sentei-me no lado oposto, na janela. A viagem começou e eu nem percebi. Do jeito que me sentia, o casal poderia ter pintado e bordado ali do meu lado e eu nem notaria. Minha mente parecia querer me massacrar um pouco mais, lembrando-me alguns trechos do oratório. “Pois o Senhor onipotente reina... Rei dos Reis... Aleleuia, aleluia, aleluia... ALE... Luiáááá!”. Ai, que vontade de esganar o Celso!

Minha tortura mental só foi interrompida por uma discussão que comecei a notar ao meu lado. O casal que iniciou a viagem aos beijos e abraços, parecia não se entender do meio para o final. Embora tentassem disfarçar sufocando um pouco a voz, era certo que estavam brigando. E a discussão foi ficando acalorada, a ponto de o rapaz se levantar de repente, indo sentar-se lá na frente do ônibus, deixando a garota chorando sozinha perto de mim. Foi bom. Só assim tirei a atenção do meu problema e comecei a pensar que havia outras pessoas com suas dores particulares. Todos são complicados. Uns mais, outros menos, porém todos.

Comecei a pensar na forma de consolar a menina. Nada espiritual, admito. Linda, cabelos claros e encaracolados, até o seu choro parecia melodia aos meus ouvidos. Olhei na direção do rapaz. “Tão idiota, meu Deus!”, pensei enquanto tirava a capa do violão. Quando me dei conta, já estava viajando naquelas lágrimas que brotavam do rosto angelical de adolescente. As maçãs de sua face estavam ainda mais rosadas, enquanto olhava perdida para o campo que corria ao lado de sua janela.

Primeiros acordes. Leva a mão ao rosto e enxuga de forma decidida o que poderia ser sua última lágrima pelo tolo que a abandonou ali. “Quando o choro é uma arma de escape...”, me escutei cantando numa altura suficientemente audível para ela. Ela voltou de seus pensamentos, baixando lentamente a cabeça, virando-se em minha direção. “Quando não há mais razão pra o seu viver...”, um misto de interesse e intriga fez seus olhos brilharem. “Quando a frustração te invade, quando o coração se abate...”, assentiu com a cabeça, como quem pergunta: “como é que ele sabe que é exatamente assim que me sinto?”. “Quando a morte parece o único jeito pra você”, ela arregalou os olhos pela gravidade e exagero da frase.

Começamos a rir da situação tão trágica, tão fora de qualquer possibilidade. Ainda mais, por causa de um borra-botas qualquer, sem competência para manter um relacionamento.“Tem caneta e papel?”, minha pergunta pareceu pegar-lhe de surpresa. “É que a inspiração está chegando e se eu não me apressar, posso perder uma bela canção”. “Você é compositor?”, perguntou na tentativa de ganhar tempo, enquanto vasculhava com rapidez a sua bolsa.

Encontrou o que queria. Uma caneta que comprara como lembrança do congresso. Antes de estendê-la para mim, completei: “pode ir escrevendo enquanto eu canto?”, ela assentiu, sentando-se melhor ao meu lado:

Olhe em volta, veja a criação, contemple o céu e a imensidão
E verá que existe uma chama de luz
E todo problema, todo dilema, todo medo, todo segredo
Não se esqueça: Conte pra Jesus”.

De repente, lá estava eu, consolando a menina, falando um pouco sobre como as contingências nos pegam de surpresa. Não sei se falava aquilo por sua causa ou por causa do Celso e toda aquela história de voltar apertado para casa. Espiritual pra caramba, coloquei um pouco do determinismo estratégico que costumamos usar para entender as coisas como que manejadas por Deus, para desembocar justamente naquele momento. Foi com uma ladainha dessas que, logo após o ônibus encostar em Brasília, o jovem saiu em direção a sua casa e eu fiquei. Com a garota e a nova canção! Ai, que vontade de dar um abraço no Celso!

Passados alguns meses, com a raiva acalmada pelo rápido namoro com a menina do ônibus, precisei conversar com o Paulo Azevedo, pai do Celso. Ele não estava, mas o som melodioso e envolvente do Folk já anunciava a presença do seu dono. “E aí negão, tá com raiva ainda?”, aquela voz anasalada do Celso parecia ainda mais engraçada quando ele queria rir da cara de alguém. Contei pra ele os motivos pelos quais não poderia alimentar raiva dele. A viagem, diferente do que pensei, foi maravilhosa, com resultados melhores ainda. Falei da canção que compus, o que o motivou a pedir que eu cantasse pra ele escutar.

Estendeu o seu violão em minha direção e foi assim que toquei pela primeira vez em um violão de doze cordas. Ele gostou muito da canção. Mais ainda da história que a envolvia. Depois, sugeriu que eu personalizasse mais a história. Como fazer isto? Ele continuou de onde eu parei:

Quando choro, dou vazão a um sentimento
De, talvez, insegurança ou desilusão...

Depois que captei a idéia, mudei o rumo da melodia para dar mais força ao momento de dor que propunha:

A vida parece estranha, sentindo uma dor tamanha
E às vezes até me arrependo de ter um coração...

Sempre fui muito trágico. Acho que aprendi a acentuar minhas histórias com uma dose maciça de fatalismo, de tanto ouvir as histórias do meu pai. Ele sempre foi para mim a personificação de um Macbeth, de Shakspeare. O Celso riu do meu drama, mas gostou do rumo que dei ao testemunho. Para seguir a mesma linha melódica anterior, sem perder o tempo da música, fomos logo à resposta para a crise:

A resposta aos anseios meus, não vem de homens, pois é dom de Deus
Que me outorga a liberdade em uma cruz
Adeus melancolia, sinto alegria, o que há muito eu não sentia
Meus problemas, deixei com Jesus!

Foi a redenção do meu amigo. Depois do que me fez, achei que não merecia perdão. Mas, depois de me deixar tocar em seu violão, além de me ajudar com uma bela canção que surgiu de todo aquele imbróglio, me dei conta que gostava mais dele do que ele próprio seria capaz de desfazer. A menina da história foi embora da minha vida, tão rapidamente quanto entrou. Mas, a canção que ficou continua a sensibilizar corações e trazer esperança para muita gente. Ah, que vontade de abraçar o Celso!

6 comentários:

Anônimo disse...

Ow pastor... libera ae um audiozinho dessa música... escutar (quem anda com você, quando lê um texto seu, sempre vai escutar sua voz no subconsciente) essa história sem o som é covardia... tem gente que não conhece e deve estar curioso pra conhecer... ahh.. aproveitando, agarra aí um abraço bem forte... estamos com muita saudade de todos vocês...
João Paulo -CE

Wendel Cavalcante disse...

Allison,
Você está nos devendo esse livro "Contando e cantando" ou "Cantar para Contar".heheheheheh!!!
Lembrei do Congresso de Louvor e Adoração e de quando você fez esse momento ao lado de pessoas que te inspiraram.
Material é o que não falta!
Acho até que poderia virar uma seção do blog.
Abração!

Anônimo disse...

Quanto ao áudio, vou ver com a Jackie como fazer, ok João? Quanto ao livro, Wendel, estou colecionando alguns textos. Não postei aqui por serem muito grandes!

Anônimo disse...

pastor, entra no www.mediamaster.com
lá você pode fazer um upload das musicas e feito isso, é bem facil colocar um player no blog. É bom que vc pode fazer uma rádio propria... vê lá.. é bem facil o cadastro.
Abraços.
JP

Pilates Mania disse...

Amigão:
Concordo plenamente com os comentários do João Paulo e do anônimo.
Amo ler suas histórias, suas tiradas são tragicômicas.
Consolar já era seu ministério desde que pesava 60 e poucos kilos, hein?
Beijo

Anônimo disse...

Fico feliz com o feed-back de vcs! Isto me anima a continuar postando mais alguns "capítulos" desse projeto.

É que a canção em si cria experiências diferentes em seus ouvintes. Agora, a experiência por trás da própria composição é um outro caso.

Talvez nem seja o que a pessoa que escuta a canção imaginou. Se é que parou para pensar nisso. O fato é que achei um exercício positivo, mostrar os bastidores de uma inspiração.