quarta-feira, 3 de junho de 2009

INFRAÇÃO DE VIDA!
Allison S. Ambrósio

Fui visitar uma mulher no hospital. Não havia nada que ela pudesse fazer para me retribuir a visita, ou a atenção que lhe estava dispensando. Na realidade, trata-se de uma pessoa que precisa desesperadamente de ajuda. Dependente química, moradora de rua eventual e abandonada pelos próprios filhos, viu-se adoentada de pneumonia e encostada sobre uma maca nos corredores de um hospital público.

Caminhar pelo corredor até o lugar onde ela deveria estar foi uma das provações mais fortes que tive no dia. Rostos desfigurados pela dor, olhos fundos e vítreos de desesperança e silêncio... Não o silêncio da paz no descanso, e sim o silêncio do abandono e da solidão, companheiros freqüentes desses lugares.
Ela não estava lá. Já havia saído para mais uma bateria de exames, devido a um inchaço no abdome. Confesso ter sentido um pequeno alívio. Seria hipócrita se não admitisse. Apesar da necessidade pastoral de estar ali, nem de longe eu reputaria como um exercício fácil para mim. Queria sair dali o mais rápido possível, de preferência sem olhar muito nos olhos daquelas criaturas, pela horrível sensação de impotência que me habitava. Gostaria de poder tocá-las com cura, com solução definitiva, com esperança. Ao empreender minha fuga interior percebi estar fugindo de mim mesmo, dos meus medos e das minhas enfermidades na alma.

Cheguei até o meu carro no momento em que o guarda estava terminando de lavrar uma multa por eu ter parado no lugar errado, na hora errada. Tentei argumentar que era um líder cristão em missão de socorro a uma pessoa, ao que ele respondeu que uma atitude certa não justifica outra errada. O bloco já havia sido marcado e não dava mais para voltar. Uma ira me subiu ao coração, daquelas que a gente sente sem deixar o interlocutor sequer perceber. Afinal, de onde saíra uma primeira multa poderia sair outra por desacato!

Senti-me injustiçado. Achava-me em uma situação onde aquilo parecia inadequado. Um sacerdote em serviço deve estar acima do bem e do mal. Não posso ser julgado por autarquias terrenas, que não discernem “as coisas espirituais”. Mas, e se ele me perguntasse a guisa de buscar razão para cancelar a multa, como foi meu desempenho no hospital? E se, por um bambo do universo, crise de honestidade, uma ação pedagógica de Deus ou coisa que o valha, eu resolvesse dizer com sinceridade e riqueza de detalhes como foi?

“Bem, cheguei e a mulher que eu iria visitar não estava, o que me deixou aliviado, porque eu mesmo não via a hora de sair daquele lugar tão depressivo. Ao retornar pelo corredor das dores, não deixei de perceber um homem com dois enormes nódulos no queixo e no supercílio esquerdos. Fiz-me de morto, com medo de que ele percebesse que eu estava ali para, entre outras coisas consolá-lo. Vi uma menina, cujo papel sobre sua maca indicava problema ortopédico, mas, como estava com um celular em punho, achei que estaria bem , apenas conversando com quem quer que fosse, menos comigo. Vi um homem arfando de dor, reclamando de problemas no coração. Esse sim, quase me fez parar e orar! Esperto, dobrei rapidamente em direção à porta e consegui sair ileso!”.

Ao final de minha narrativa, contemplando, talvez, o rosto decepcionado do guarda que, queira ou não estava apenas cumprindo o seu papel, acho que eu mesmo lhe diria envergonhado: “PODE LAVRAR MAIS UMA PRA MIM, POR FAVOR?”

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