terça-feira, 15 de abril de 2008

OS MISERÁVEIS
Allison S. Ambrósio




Ele dorme.
E embora a sorte lhe fora bem estranha,
Ele vivia.
Morreu quando não teve mais o seu anjo;
A coisa simplesmente chegou,
De moto próprio.
Como a noite que chega,
Quando o dia se vai.

Com essa pequena poesia termina uma das mais lindas peças literárias que já tive o privilégio de ler: “Os Miseráveis”, de Victor Hugo (Ed. Cosac & Naify/ Casa da Palavra). Por vários dias vi-me envolvido na trama que, apesar de escrita no fim do século dezenove conseguiu me enlevar, assustar e extasiar, levando-me às lágrimas em seu desfecho.

O bispo de Digne, modelo ideal de um homem de Deus, que levava seu compromisso com Deus e com o próximo até as últimas conseqüências. Um homem cuja vida gritava de forma ensurdecedora, ainda que caminhasse em reflexivo silêncio. Não abriu mão do sustento oferecido pelo Governo Francês pela simples razão de querer gasta-lo com mais remédios para os pacientes de seu humilde hospital.

O encontro desse anjo com Jean Valjean, uma alma adoecida pelo ódio e desejo de vingança, que fora preso e amargara dezenove anos acorrentado nas galés, por ter cometido o crime de roubar alguns pães para alimentar os seus sobrinhos famintos. Ao cumprir sua pena, descobre que havia mais sofrimento reservado para si. Um “forçado”, termo dado àqueles que haviam sido presos, era menos que nada para a hipócrita sociedade daquela época.

Respirando ainda esses ares infernais foi que Jean Valjean encontrou o Bispo que, sem se importar com sua história, seu passado marcado de ódio e vingança, lhe deu abrigo, comida e, acima de tudo, um amor desconcertante. Começa aí sua conversão.

As cores da transformação, primeiro do próprio Bispo e depois de Jean Valjean são tão fortes, tão brilhantes e tão verossímeis, que fui capaz de sentir como se eles verdadeiramente tivessem existido. Talvez seja isto o que faz um clássico tornar-se um clássico – a capacidade de reproduzir no papel todas as nuanças e idiossincrasias da mente humana.

Impressionei-me com a inflexibilidade dogmática de Javert, um inspetor de polícia que acreditava ser impossível a um forçado a própria restauração. A ingenuidade da linda, sincera e sonhadora Fantine que, ao cair nas mãos de um bom vivant irresponsável, se vê abandonada, grávida e sozinha no mundo. A pequena Cosette, aparentemente condenada a uma vida de trabalho escravo sem trégua, sem carinho e sem algo para chamar de seu.

Marius, um jovem idealista que se vê diante de uma promessa a cumprir, lutando contra o asco de perceber que o beneficiário de tal promessa é um bandido frio, inescrupuloso e abjeto chamado Thernadiér. O pequeno Gravouche, um menino que conseguiu se tornar adorável, mesmo após ser abandonado pela mãe, ignorado pelo pai e condenado a viver sob a mira das botas dos passantes, a crueldade da polícia e a intolerância das pessoas com as crianças de rua. Ele é poeta, é divertido. Demonstra ser emocionalmente inteligente, quando consgue rir de seu próprio infortúnio, cantarolando canções populares enquanto recolhia cartuchos de soldados mortos, sob a chuva de balas do exército francês.

Cheguei à conclusão de que o livro mexeu muito comigo, por conseguir retratar com tons incômodos as diversas nuanças de minha própria história. Encontro crueldade em minhas ações reprováveis, tal qual os Thernadiér a maltratar a criança que lhes estava em poder. Por outro lado, sinto-me impelido a fazer o bem a alguém, ainda que tal atitude me custe muito caro em suas conseqüências, assim como o atormentado Jean Valjean.

Encontro também um pouco do intransigente Javert, que ao perceber a incoerência do que defendia resolveu dar outro ruma à sua vida, assim como Eponine, cuja aparência inicial é de uma pequena lady e seu final é como uma maltrapilha esquelética, prostituída e apaixonada platonicamente por um membro da sociedade parisiense.

Há de tudo em nós. Generosidade e covardia, apatia e solidariedade, vícios e virtudes, forças inacreditáveis e fracassos retumbantes. Foi quando me dei conta de que o livro pode até ser um clássico. Porém, nós os que vivemos é que o somos. Com muito mais louvor e autoridade que eles. Sugiro a todos os que ainda não leram este romance que façam esse favor a si mesmos. Garanto que depois irão me agradecer.

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