quarta-feira, 12 de março de 2008

FELIZ ANIVERSÁRIO, PAI!
Allison da Silva Ambrósio

“A palavra foi dada ao homem para esconder o que pensa” Charles Maurice T. Perigord, Príncipe de Benevento (1754-1838)

Não sei ao certo o que eu esperava ao ligar. Desde uma semana antes já pensava nele insistentemente. De repente, a proximidade de seu aniversário me deixou inquieto e meio ansioso para lhe falar alguma coisa. Qualquer coisa, desde que conversássemos novamente. Passei o dia esperando um sinal interior que me liberaria para fazer o contato.

Liguei para o meu irmão mais novo, no Rio de Janeiro, com o intuito de conseguir algum número telefônico do meu pai, já que ele mudava muito e não tínhamos um contato freqüente. Aliás, não tínhamos contato algum. Essa também era uma das minhas queixas em relação a ele. Se eu não ligasse de vez em nunca, seria uma espécie de órfão com pai vivo.

A impressão que me vem, sempre que penso nisso é que ele desenvolveu um mecanismo interior que o libera de qualquer responsabilidade emocional com sua primeira família. Outras responsabilidades, tais como econômica, administrativa ou financeira há muito não esperamos dele. Se não existia tal compromisso enquanto dentro de casa, imagine fora e com outros filhos para sustentar?

Liguei para ele e quem atendeu foi o meu meio irmão, um garoto simpático e inteligente, que logo me reconheceu na ligação. Contou que todos haviam saído para um jantar de comemoração pelo aniversário do velho. Afinal, setenta e sete anos de idade merecem ser bem comemorados!

A chamá-lo para me atender, pude escutá-lo na extensão, se aproximando e falando alto, como que surpreso e feliz por eu ter ligado. “É o Allison? Não acredito! É o Allison mesmo?”. Em outros tempos eu cairia facilmente nessas suas introduções. Descobri com o tempo que isso faz parte de um formidável arsenal que ele construiu durante anos, com o propósito de escapar de uma situação constrangedora como, por exemplo, não ter uma explicação plausível para o seu completo silêncio em relação a mim.

A festa ao me atender é tão dissonante com a distância que tem havido entre nós, a ponto de me intrigar. Se ele fica mesmo tão feliz assim com minha ligação, porque não me ligou pelo menos uma vez nesses últimos dois anos? Aliás, foi até mesmo um alívio para o meu coração, quando me lembrei que não havia dois anos de silêncio. Numa das minhas carências do ano passado, liguei provavelmente no início do semestre, quando as minhas angústias se agravam mais. O assunto de hoje na ligação parecia o mesmo daquela ocasião, gêmeo uni vitelino de todos os assuntos de qualquer tempo.

Suportando a saraivada de perguntas iniciais que, como disse anteriormente, tem a propriedade de manter um papo por uns minutos a mais, depois que o felicitei pelo aniversário, desejando de coração que tivesse saúde para viver ainda por muito tempo, aquela ligação que tinha vida tão curta quanto as anteriores acabou por me surpreender. Houve um elemento novo. Um choro insistente de bebê ao fundo.

Antes que eu dissesse alguma coisa sobre isso, meu pai foi logo explicando que o “neném” estava chorando muito, comentário que me pareceu uma senha delicada para se encerrar nosso assunto. Se propositalmente ou não, me ouvi perguntando sobre o tal neném, não sei se para tentar estender mais o pouco contato ou simplesmente para satisfazer uma curiosidade repentina e urgente que surgiu em meu horizonte.

Ele me respondeu como que admirado de eu não saber ainda. Era o Daniel, seu terceiro filho do novo casamento. Como um flash acionado em algum ponto do salão, lembrei-me de alguma coisa que o meu irmão mais velho me havia falado nesse sentido. Disse-me que o pai estava adotando uma criança. Na ocasião achei tão improvável quanto banir a corrupção no Congresso através de Medida Provisória. Depois de onze filhos com minha mãe e mais dois com sua nova mulher, o que queria ele ao assumir mais um menino?

Um misto de surpresa aliada à revolta, indignação ou crítica tomou meu coração. Fiquei de tal forma que me ouvi perguntando segunda vez: “Como assim, mais um filho?”. Sua reação também foi por puro reflexo: “Ele iria morrer se a gente não acolhesse!”. “Mas, e a gente?”, pensei, “por que não nos acolher também? Por que, ao invés de adotar mais um, não cuida de alguns dos que já são seus?”, pensei outra vez. “Se pode investir em uma criança dos outros, por que não investir numa das que você mesmo pôs no mundo?”, pensei miseravelmente outra vez.

Um hiato, rápido e eterno. Talvez, os segundos que perdi em tantas perguntas interiores que, qual magma vulcânico agitava-se descontrolado no meu coração. Quis ser cruel e vomitar minha cólera repentina. Quis ser infantil, qual menino que deseja o mesmo carrinho que assistiu ao outro ganhar. Quis ser um moralista, que constrange a partir do próprio exemplo, mas, ao lembrar de mim mesmo e do esforço que faço para melhorar, achei melhor não correr o risco de ser um demagogo.

“Só liguei mesmo para saber se você está bem e com saúde. Feliz aniversário, pai”, falei metalicamente. “Obrigado meu filho”, ele me respondeu formalmente. Devo ter mandado um beijo ou coisa parecida, ao que ele provavelmente tenha devolvido. Desligamos. Minha filha surgiu no canto da sala, vindo em minha direção da forma que mais gosta ultimamente – fazendo estrelinhas. Contive o desejo de chorar, sem saber exatamente por quê. Ela veio e saltou perigosamente sobre mim, com o risco de se machucar. Dessa vez não briguei. Consegui segurá-la, apertando-a contra o meu peito sobressaltado.

Será que foi isso? Será que saltei também?

5 comentários:

Unknown disse...

Que bonito, Allison. O ato de não repetir aquilo que sofreu se chama nobreza.

Um beijo

Domingos

Allison Ambrosio disse...

Obrigado, meu amigo querido. Mas, tenho que confessar... Fico com medo de não saber em qual momento começa esse distanciamento. Afinal, acredito que sejamos capazes de falhas bem intencionadas... Olho para os meus filhos com um desejo enorme de infringir nos mesmos erros que hoje cobro do meu pai.

Jackie Kauffman Florianopolis-SC disse...

Amore,
Vc tem sido um paizão: presente, amoroso, ouvinte... um pai divertido, ótima companhia.... Nossos filhos são privilegiados.
Bj

Allison Ambrosio disse...

Mulher, não faz assim que eu me apaixono de novo!

Anônimo disse...

Oi Alisson,
Vc me fez chorar,esses mesmos questionamentos invadem meu coração.
Abraço