segunda-feira, 10 de março de 2008

TAGUATINGA PLANO PILOTO
Allison da Silva Ambrósio

O sonho de qualquer chefe de família é o de comprar a casa própria. Mansão ou quarto e sala, o importante é ter escritura e matrícula. Acho que esse sempre foi o desejo do meu pai. Tanto, que comprou a nossa casa em Taguatinga Norte, setor O. Era de longe o que havia de mais distante do Plano Piloto àquela época. Mas era próprio. Quase.

Que importava se eu precisava viajar quarenta e dois quilômetros todos os dias pra chegar ao trabalho? O pai estava feliz com sua casa própria. Quer dizer, com algumas “poucas” prestações a pagar, pelo BNH. Não dava pra voltar na hora do almoço. Quando saíamos pela manhã, só voltaríamos tarde da noite, após o período das aulas.

As casas eram tão pequenas no setor “O”, que o bairro foi apelidado carinhosamente como “Vila do Cachorro Sentado”, já que os pobres caninos de lá não conseguiam espaço suficiente para se deitarem para dormir na sala. Mas tínhamos três quartos. Imagine...

Foi por isso que, logo após começar a trabalhar em um famoso escritório de advocacia, precisei comprar uma boa marmita. Nas andanças de office-boy não teria problema para encontrar. Foi nas lojas americanas, no setor comercial sul. Enorme, precisei observar bem, antes de comprar. “Pega uns dois quilos, com certeza”, pensei. Comprei.

Minha mãe precisava levantar bem cedinho para preparar minha comida. O cardápio era tradicional. Quarenta e cinco por cento de feijão, mesma quantidade de arroz. O dízimo do espaço era preenchido por um ovo frito bem espalhado pela frigideira, para dar um apuro estético à superfície da marmita. Sempre a aconselhava fazer o feijão com bastante caldo.

Para não me atrasar, não poderia passar das 07h15min para sair do ponto de ônibus. Religioso, o carro Taguatinga - Plano Piloto passava pela gente naquela costumeira má vontade de atender aos menos favorecidos. Tinha a impressão de que, se não subisse logo no coletivo, eu ainda iria passar muita vergonha. Parecia até premonição.

Seis e meia da manhã. Levanto depressa, tomo banho e como um pãozinho economizado da noite anterior. Sinto o perfumado tempero do feijão da mãe, que já acomodou minha marmita em um saco plástico das Casas da Banha. Sete horas. Saio de casa feliz da vida. Apesar de todo o sufoco, sempre gostei das primeiras horas da manhã. São dez minutos até a parada. Não podia correr riscos desnecessários.

E lá vem ele. O motorista impaciente, que parecia esquecer de que endereço saiu para pegar o ônibus. Ainda tinha de acordar antes de mim. Não entendia por que tanta truculência. Entrei rapidamente e logo procurei os primeiros lugares. Tão importante quanto viajar sentado era conseguir sair depois que enchia. Preservando a integridade da marmita, é claro.

A viagem sempre era tranqüila no inicio. A coisa pegava um pouco somente quando chegávamos à Ceilândia, cidade-satélite que, desde cedo, parecia vocacionada à violência. Mas nunca àquela hora. É sempre assim: noventa e nove por cento das pessoas de uma cidade são trabalhadores honestos, cumpridores de seus deveres. Mas, é necessário somente um por cento de gente sem-vergonha, de marginal, de bêbados para que todo mundo seja tachado de vagabundo. Na Ceilândia tem muito trabalhador. E como tem! E todos trabalham no mesmo horário. E pegam o mesmo ônibus. O meu.

Vencida essa etapa, era hora de enfrentar o trânsito da estrada-parque Taguatinga, ponto de ligação com o Plano Piloto. Passávamos pela entrada do Guará, setor de mansões Park-Way, setor de Indústria e Abastecimento. Após intermináveis paradas ali, enfrentávamos a saída sul, que dava para o Núcleo Bandeirante, setor gráfico, palácio da justiça e eixo monumental. Ao dobrar à direita na avenida W-3 sul, eu descia no primeiro ponto. Setor Comercial Sul. Edifício Presidente, sexto andar.

Todo santo dia, o mesmo ritual. A mesma lotação, os mesmos rostos e os mesmos cheiros. Inclusive o da marmita. Em cardápio que está ganhando não se mexe. Pelo menos voluntariamente.

Estava viajando como de costume numa daquelas manhãs. Já havíamos passado da Ceilândia, quase chegando à entrada do Guará. O coletivo foi diminuindo, diminuindo até parar no acostamento. O que mais aterroriza o trabalhador brasileiro é tomar um ônibus que resolve quebrar bem longe do seu destino. Não adiantou minha vantagem em subir antes de encher.

O pior de um ônibus quebrado é o próximo que chega! Se o primeiro já vem lotado, imagine como ficará o segundo? E ali todos estavam atrasados, desejosos de entrar em um espaço improvável, de tão compactado que estava pelos solavancos e chacoalhadas. Começaria assim um desagravo à lei da física. Dois corpos conseguem ocupar o mesmo lugar no espaço. Pelo menos dentro do Taguatinga – Plano Piloto II!

Tudo o que consegui foi um pequeno espaço para pôr o pé esquerdo no primeiro degrau. Todo resto estava tomado de pessoas que se acotovelavam, tentando uma melhor posição. Sorte eu ser canhoto, pois somente com a mão esquerda também foi que encontrei algo em que me segurar dentro do ônibus. Se o motorista do primeiro era truculento, acho que aprendeu com o motorista do segundo que, de quebra tentava observar o mesmo tempo da viagem anterior.

A cada aumento na aceleração meu coração acelerava também. Era como se ele nos culpasse pelo mau estado de conservação daqueles veículos. Não havia ninguém para explicar que éramos as maiores vitimas de tudo aquilo. O Guará está chegando... Uma senhora gorda resolveu melhorar sua posição no grid. E tome espalhar gente pela minúscula porta do coletivo. As pontas dos meus dedos estavam rosadas, devido ao sangue que rareava ali por causa da pressão. A próxima parada estava chegando...

Tentei encurvar ao máximo o meu corpo para trás, numa tentativa desesperada de conseguir um contrapeso à freada que viria logo a seguir. A mão se encontrava dormente de tanta força que lhe era exigida. O motorista começou a domar a fera... Outra multidão esperava para entrar – os que perderam o primeiro e os costumeiros do segundo. O homem meteu o pé no freio, como se quisesse reproduzir uma cena dos velozes e furiosos, desafio em Tóquio!

Foi o momento da minha marmita se revelar ao mundo. Por mais força que empreendi para me manter no ônibus, a pressão foi grande demais para alguém apoiado apenas com um pé, enquanto o outro descrevia a postura do National Kid, em seu melhor desempenho. Só que, ao invés de uma pistola de luz, minha mão direita segurava a marmita medonha que eu comprei nas lojas Americanas. Com a freada, senti meus dedos se abrirem com a facilidade de uma represa que rompe a barreira.
Por um momento me senti o super homem, voando na direção de todo o cascalho que antecedia a parada do ônibus. Foi uma aterrisagem de barriga digna das reprises do Fantástico. Um verdadeiro Show da Vida. Minha marmita se abriu, sociabilizando o feijão com muito caldo que, apesar de espargido sobre os pobres trabalhadores, não perdeu seu aroma inconfundível. O arroz já tinha deixado o ninho muito antes, indo parar espalhado nas plantas atrás da parada.

O ovo finalmente encontrou sua vocação para transporte alienígena. Saiu voando à minha revelia, em direção à árvore mais próxima. Ralei a barriga, os cotovelos, as coxas e algumas falanges das mãos, enquanto percebia o êxtase da audiência a me ovacionar pelo show! “Vai, idiota! Pegue carona outra vez!” e coisas do gênero que se faziam ouvir tanto dentro como fora do coletivo. E aquele almoço estava prometendo tanto...


Um comentário:

Pilates Mania disse...

oh dó!!!!
De quem especificamente não sei, se do ovo, do arroz, da mãe que levantou cedo, do infeliz motorista,desse povo em geral com certeza....
Mas não de você... por ter humor para escrever uma tragicomédia e porque as asperezas da vida poliram sua sensibilidade.....