segunda-feira, 10 de março de 2008

TRAGÉDIA DA VIDA REAL
Allison da Silva Ambrósio

Depois de um dia quente e exaustivo de trabalho eu voltava para casa. Pude perceber, logo nos primeiros meses de minha nova moradia, que o bairro que escolhi é um dos bons e mais estratégicos da ilha de Florianópolis, Santa Catarina. A partir das facilidades, da proximidade da escola dos meninos, farmácias, supermercados e lazer, fiquei feliz com a decisão final que tomamos, eu e minha esposa, de nos mudar para lá.

Ao contrário do que nos haviam alertado, o povo catarinense se mostrou cordial e educado até mesmo nos detalhes. As faixas de pedestres nas ruas costumam ser observadas com respeito, o trânsito na maioria das vezes se apresenta calmo e, quando se sabe a hora certa, os carros transitam tranqüilos pelas pontes de acesso e saída da capital.

Quando viemos para Floripa, como é carinhosamente chamada pelos “manézinhos da ilha”, tínhamos no item segurança um dos principais fatores. O número de assassinatos no Estado é de quatro para cada cem mil habitantes. É o menor da nação que, por sua vez registra a média de vinte e três mortos por cada cem mil. Trafegar com os vidros do carro baixos para sentir a brisa era um deleite impraticável na cidade de onde viemos.

E assim, durante os onze primeiros meses da minha estada na cidade pensei ter descoberto um lugar, onde os poderes públicos funcionavam corretamente, as pessoas são pacientes e cordiais, contribuindo assim para a alta taxa de qualidade de vida deste quinhão da região sul. Recentemente foi divulgada a notícia de que Santa Catarina detêm os melhores índices de qualidade do ensino, além de ser o destino turístico número um em todo o Brasil.

Talvez, fosse até nisso que eu pensava ao voltar para casa naquele dia. Eram mais ou menos 18:00h. A avenida Almirante Lamego é uma das saídas em direção à ponte, por isso é um pouco congestionada nos horários de pico. Dirigi devagar o suficiente por ali, para notar uma cena esdrúxula: o latão de lixo de um dos requintados condomínios do bairro, emborcado sobre o que me pareciam pernas humanas.

Ao me aproximar e observar melhor, tive a certeza do que via. Havia um homem literalmente vestido com aquele latão, banhado dessa forma com os detritos fétidos que havia em seu interior. A julgar pela sua pasta executiva ao lado da lixeira, a qualidade do único sapato que lhe restava no pé e o tipo de roupa que vestia, este homem só deixava a todos os passantes a idéia de que havia surtado, perdido qualquer senso ou controle de suas faculdades mentais.

Estacionei meu carro na garagem do meu prédio e voltei até o lugar, após observar a chegada de uma rádio patrulha ao local. Alguém chamou a polícia, com o medo de aquele homem vir a tornar-se violento ou descontrolado. Na medida em que me aproximava novamente, eu o escutava gritar a todos que os queria longe dele, pelo menos uns cem metros. “Nem o governador eu quero aqui perto de mim!”, vociferava a todos, aquele senhor de aparentes sessenta e poucos anos.

Os policiais, ao contrário do que pensávamos inicialmente, apenas observavam de longe, interferindo eventualmente para facilitar o tráfego naquele ponto já tomado de curiosos – eu incluído. Trata-se de alguém severamente abalado, pensava com meus botões. Esse pensamento era compartilhado por todos, inclusive pela parente do homem, uma senhora gorda que procurava demovê-lo daquela situação.
De passos lentos, respiração difícil e um flagrante constrangimento no rosto, ela chegou a trazer um copo de água, provavelmente com açúcar, para tentar acalmá-lo e tirá-lo daquela situação vexatória. A cada investida da mulher igualmente idosa, a resposta do homem era comer daqueles restos de comida estragada, entre lamentos sobre a empresa que fizera a sua desgraça. “Você conhece a empresa tal? Foi ela que me colocou aqui!”, ele gritava, mergulhando novamente o rosto nos detritos.

Os soldados se comunicaram através de rádio, o que resultou na chegada de mais duas viaturas da polícia militar. Parecia relativamente simples o que precisava ser feito. Um homem claramente desequilibrado, de uma compleição absolutamente distante de parecer um Van Dame ou Rocky Balboa, o mais correto seria imobiliza-lo, impedindo-o de se ferir ou ferir outras pessoas ao redor, aguardando assim a ambulância que o levaria, pois o único destino plausível para ele era um hospital.

Enquanto ponderava sobre isso, ouvi ao longe o ruído da sirene de uma ambulância. Todos ao meu redor se alegraram aliviados. Mas, antes não tivessem vindo os para-médicos, pois seriam menos pessoas a assistirem o espetáculo de truculência e despreparo de homens públicos, cuja missão devia ser proteger e preservar a segurança dos cidadãos.

Num ato insano e descabido, ao sentir-se acuado pelos policiais, o homem começou a tentar acertar neles os restos da comida fétida que comia, dizendo que estava contaminada. Esse era todo o armamento que possuía para enfrentá-los. Num determinado momento, um policial jovem e bastante atlético, visivelmente irritado, desferiu-lhe um golpe que o fez cair com o rosto no cimento frio, na frente da farmácia, o lugar mais adequado ao tipo de socorro necessário àquela situação.

Uma vez que o homem fora derrubado, outros três policiais se aproximaram rapidamente e com tal ferocidade, que as pessoas presentes àquele espetáculo de horror gritaram, mais por desespero que por revolta, exigindo um tratamento no mínimo mais humano àquele homem. O que não aconteceu. Mesmo cruelmente algemado – seus braços foram puxados para trás com a clara intenção de produzir dor – e dominado pelos policiais, o mesmo soldado que o derrubou se conservava debruçado sobre a sua cabeça, enquanto pressionava o seu pescoço em um golpe chamado de “mata-leão”.

Vendo aquilo tudo, fazendo coro timidamente com alguns poucos que ousavam questionar os policiais, me senti um lixo pior que o que fora comido pelo homem, que agora se tornava três vezes vitima: vitima de um negócio mal feito, do descontrole experimentado em uma via publica e, o pior, vitima de pessoas que tinham por obrigação zelar por sua integridade.

Na mesma proporção da minha raiva, da minha indignação com aquela atitude troglodita de homens sem preparo adequado, surgiu em meu coração o medo de me envolver. Sim, de repente, me dei conta de toda a covardia que envolve até as pessoas que querem proclamar justiça. Pensei nos meus filhos e na possibilidade de os soldados se voltarem contra mim. Depois de pensar nisso, percebi que era geral o medo. Todos queriam impedir, porém, todos tinham algo a perder se insistissem na revolta.

Um senhor de idade avançada demonstrou mais coragem do que eu, quando foi censurar frontalmente a atitude do soldado infrator. “Vá até a delegacia e preste queixa, então!”, vociferou o soldado. “Vou sim!”, respondeu o ancião. E eu ali, paralisado de medo, enquanto minha mente desenvolvia os discursos mais inflamados e ameaçadores para serem ditos àqueles homens equivocados em sua profissão.

A viatura partir em alta velocidade. As pessoas se dispersaram tão rapidamente quanto à ambulância que fora acionada sem ser usada. A rua se esvaziou novamente, ficando apenas aquela mulher, parente da vítima, além de todo o lixo espalhado. Duas coisas me chamaram a atenção naquele quadro. O homem, que pensava estar ruim a sua situação, descobriu que até o que é ruim pode ser piorado. O lixo fétido, que jazia espalhado pela calcada nada mais era do que uma síntese infeliz de tudo o que os homens, em vida, ainda podem se transformar.

Lembrei de uma canção antiga do Silvio Brito: “pára o mundo, que eu quero descer!”.

4 comentários:

Pilates Mania disse...

Allison:
Estou orgulhosa em postar o primeiro comentário em seu blog. Parabéns, que maneira bacana de se expressar e escrever. Sua percepção da situação vivida por esse senhor, foi comovente.
Quem canta como voce, só pode ter uma alma muito sensivel.
Jeusa (amiga da Bárbara e Eduardo)

Allison Ambrosio disse...

Só deles? E por que não minha amiga também? Espero que sim! Aliás, vou para o aniversário da Betesda em Sampa este fim de semana e espero ver você e seu marido, ok?

Um grande abraço!

Bá Reis disse...

Fala sério. Pára tudo que também quero descer!
Esqueci de mandar o endereço do meu blog, né?
Aí vai: http://barbaragreis.blogspot.com/

Pilates Mania disse...

Era só uma referencia, nem imaginei que fosse se lembrar de mim. Mas tietei bastante vc no congresso em S.Negra...
Será um prazer revê-lo em Sampa, meu fiel companheiro enquanto dirigo nesse transito maluco, só dá vc no meu disc player.
Ainda tenho um sonho: A gravação da música "Faz teu tabernáculo em mim". (Nem que seja no you tube..)
Um abração
Até amanhã;
Jeusa