domingo, 30 de março de 2008

PARA ENCERRAR O MÊS

TÂNIA LÚCIA
Allison da Silva Ambrósio

Pedalando na Avenida Beira Mar Norte, na linda e ensolarada manhã que se fez hoje na ilha, já estava retornando ao ponto de partida, quando observei do meu lado esquerdo uma exposição de veículos antigos. Havia vários Dodges, Mavericks, Dkws e fuscas, muitos deles. Dentre as muitas sensações que tive ao encontrar esses carros rigorosamente completos, como que desafiando o tempo, pude sentir minha ansiedade aumentando, depois de perceber que já havia andado na maioria deles!

Ainda bem que foi justamente quando estava me exercitando com a bicicleta, pois de outra forma eu teria uma sensação de dores por todo o corpo. Vi uma Rural 1964 que tinha as mesmas cores que um carro similar, dirigido por meu pai em certa ocasião, quando nos arrumamos à meia-noite e saímos em direção a estrada de Santos. Recém inaugurada, inclusive! Um Galaxie 500, também exposto ali me lembrou uma dessas noites preciosas quando, ao pegar uma boa estrada e sentir o desejo de pisar mais fundo, meu pai me “incumbiu” de acompanhar o avanço do velocímetro, enquanto ele testava os limites do veículo.

Seria a mais absoluta hipocrisia se eu quisesse aqui “pagar” uma lição de moral no velho, pois não me lembro de ter ficado tão excitado com uma infração como fiquei naquela noite. Aliás, nunca soube direito qual era a função de meu pai na Ford-Willis onde trabalhava. Só me lembro que de tempos em tempos ele aparecia em casa com um carro novo, que era devolvido no dia seguinte.

Mas, dentre todas essas lembranças que pipocavam em minha mente, indo e voltando, unindo meu passado ao meu presente e trazendo-me de presente novas lembranças, parei de repente, como que hipnotizado por ela, a grande dama da minha exposição – Tânia Lúcia.

Primeiro carro que pude chamar de meu, Tânia Lúcia era um Volkswagen TL (daí o apelido), bege, frente alta e bancos em forma de gomos, muito luxuosos para aquele tempo. Meu pai a havia comprado num daqueles negócios mirabolantes que só ele conseguia fazer. Sem nenhum problema aparente, tanto na máquina quanto na lataria, Tânia Lúcia logo passou a fazer parte do meu mundo, na melhor forma possível.

Veio com um toca-fitas que não tinha rádio, único exemplar que conheci em toda minha vida. Fui à discoteca 2001, no Conjunto CONIC, última loja antes de se chegar ao Setor Comercial Sul. Comprei as fitas dos grandes maestros: Paul Mauriat, Glenn Miller, Ray Connif, aproveitando alguns títulos que precisei pagar por ali, como funcionário da Check Mate Informática.

Morávamos em Valparaízo de Goiás, a cinqüenta quilômetros de Luziânia, na direção de Goiás e quarenta e dois na direção de Brasília. Portanto, apenas para ir e voltar do trabalho eu dirigia oitenta e quatro quilômetros todos os dias. Meu pai, com uma resistência igual à minha hoje quando o assunto é trajeto longo, dormia logo após eu ajustar a frente da Tânia Lúcia em direção à Estrada-Parque Taguatinga, roteiro obrigatório para voltarmos para casa.

Uns quilômetros mais adiante era o momento de eu pegar uma das minhas fitas cassetes. Éramos nós três – eu, Tânia Lúcia e o Glenn, Ray ou Paul, agora mais íntimos do que nunca. Aos primeiros acordes da orquestra e todo o cansaço do dia desaparecia como mágica. Tânia, solidária com meu sonho diminuía até o ronco de seu motor de mil e seiscentas cilindradas. Mal sabia ela que aquilo também era música aos meus ouvidos. Em um novo momento encantado, os lindos eucaliptos que ladeavam a estrada, perfumando a viagem de todos desapareciam. Via-me dirigindo nas auto-estradas européias, vendo castelos centenários onde havia somente árvores, pouco tempo antes.

Tânia Lúcia também sofrera uma revolução estética impressionante. Não era mais um Volkswagen mil, novecentos e setenta e três. Havia se transformado em um potente Porsche Carrera conversível, o deus sobre rodas daquele tempo. Glenn Miller continuava a jogar suas harmonias perfumadas de eucalipto, enquanto eu cortava o negrume da estrada em espírito e em verdade. Em espírito, nas estradas suíças, embevecido com os castelos que nunca visitei. Em verdade, na estrada-parque em direção ao Valparaízo de Goiás.

E meu pai? Meu pai, em meu devaneio semi-juvenil tinha se tornado em uma loura estonteante, de cabelos esvoaçantes e medidas generosas. Afinal, a Jackie ainda não existia em minha vida, além de nenhum Play-Boy sair por aí passeando com papai. Que outra atribuição poderia lhe dar em meu sonho? Porém, por questões mais que óbvias, nunca me senti a ponto de estacionar meu Porsche ao lado de um castelo e dar uns beijos na minha loura!

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