segunda-feira, 31 de março de 2008

A ANSIEDADE DE CADA DIA
Allison da Silva Ambrósio

“Não andeis ansiosos por coisa alguma; antes em tudo sejam os vossos pedidos conhecidos diante de Deus pela oração e súplica com ações de graças; e a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e os vossos pensamentos em Cristo Jesus”. Filipenses 4:6, 7


Certo homem foi ao médico, sentindo muitas dores por todo o corpo. Sendo solicitado que apontasse os lugares em que pareciam mais fortes, com o indicador ele passou a mostrar e a dizer:

- Ai! Dói aqui e, ai, dói aqui também doutor! Ai! Aqui também dói!

Ao final da consulta ele saiu com o dedo indicador engessado!

Fica difícil tomar remédio para dores que não sabemos definir. É muito ruim quando sentimos que há algo errado em nosso interior, embora não saibamos corretamente o que é. É como o bebê recém nascido que não sabe se exprimir. Apenas chorar. De madrugada!

Gosto desse versículo acima, porque ele joga alguma luz sobre a questão da ansiedade, grande incógnita para a raça humana. Logo no início já propõe que em tudo devem ser conhecidos os nossos pedidos diante de Deus. Algo como se aproximar de alguém para compartilhar um problema, tendo pleno conhecimento da situação.

Interessante observar que, apesar de conhecer o nosso coração, Deus espera que compartilhemos o que sentimos, reflitamos sobre o que realmente queremos, ou o que prioriza a lista das nossas angústias. Ouvi algo realmente importante essa semana sobre a Bíblia. O objetivo da Palavra não é revelar Deus a nós. Justamente o contrário. Revelar-nos a nós mesmos e, no processo, encontrarmos Deus.

Quando Paulo afirma que em tudo devem ser conhecidas diante de Deus as nossas petições, ele cria um ambiente não para Deus, e sim para nós, para encararmos a realidade a nosso próprio respeito - aquilo que realmente importa ou incomoda ou nossos corações. A cura da ansiedade é a confrontação honesta do que passa pelas nossas mentes, na medida em que confessamos sentir.

Quando Sigmund Freud lançou as primeiras luzes da psicanálise, não foi à toa que o processo terapêutico ficou conhecido como “talking cure”, ou seja, a cura por falar. Quando você fala, quando você desabafa, quando você excreta da alma aquilo que lhe incomoda, ocorre o inicio da cura, do alívio que você precisa para prosseguir. A oração, de fato, nos conecta com Deus. Mas, diferentemente das nossas deduções arrogantes, não é para que Deus se agrade de nós, e sim, para que nós nos percebamos Nele. Saber que ele está lá, perto da nossa voz, ouvindo sobre aquilo que ele já conhece a nosso respeito, traz alivio à nossa alma.

Coisa alguma e em tudo – A abrangência dos termos nos dá a dimensão do envolvimento que Deus disponibiliza para cada um de nós. Nada do que nos aflige deve ser esquecido. Nenhuma ansiedade deve escapar de ser confrontada, trabalhada, confessada aos pés de Jesus. Se afligir o suficiente para roubar um minuto sequer do nosso tempo, pode e deve ser compartilhada com Deus.

E a paz de Deus – O grande objetivo de Paulo não era o de desviar nossa atenção da situação presente. Pelo contrário, ele queria que a enfrentássemos, porém, de uma maneira mais consciente, mais clara e, consequentemente, mais objetiva. Sei exatamente o que está acontecendo e conto com todas as minhas possibilidades para solucionar.

Penso que aí é que ocorrem os equívocos na interpretação do texto sagrado. Em nenhum momento o apóstolo está afirmando a solução imediata, ou sequer a solução definitiva de um problema. Não há regalias para a vida dos crentes sobre a terra. Não nos tornamos imunes às correntes de águas que arrastam carros no Rio de Janeiro, aos ônibus incendiados em São Paulo, aos diques arrebentados, cheios de lama no interior de Minas Gerais ou a onda de assassinatos em Vitória do Espírito Santo. O que os cristãos parecem querer na verdade é um salvo conduto pela vida, onde as dores são expulsas do nosso cenário e nunca mais saibamos o que é provação. Um conto de fadas parece ser mais próximo dessa realidade impossível que muitas vezes buscamos com a nossa espiritualidade.

Quero amar a Deus sem tirar os pés do chão da minha própria história, porque senão, vou acabar criando um mundo imaginário, de faz-de-conta, sem qualquer conexão com a realidade em que vivo. Deus torna-se assim um objeto de culto dissociado do verdadeiro eu que, por causa desse distanciamento, irá embrutecendo lentamente, até que Ele não signifique mais nada para mim.

Pela oração e súplica – O canal de comunicação fica definido: oração e súplica. Uma vez que são apresentados dessa maneira, fica clara a diferenciação entre termos. Orar é falar, contar, estabelecer contato. Não significa necessariamente pedir, reivindicar, reclamar ou, muito menos ainda, exigir qualquer coisa. Significa comunicar, estabelecer através da oratória, cientificar. Poderia trabalhar, dentro dessa linha de raciocínio, a oração como um boletim atualizado sobre o estado do paciente que se dirige a Deus.

A súplica surge a partir disso. Depois de relatar, conhecer com clareza o que me aflige tenho subsídios para suplicar o favor do Senhor para tal situação. Tenho a impressão de que acontece mais ou menos como nós nos relacionamos com nossos filhos. Eles se aproximam e choram, às vezes até bem mais do que falam, e nosso papel é o de ajudá-los a coordenar as idéias, de modo a que eles mesmos consigam compreender realmente o que os está incomodando.

Geralmente, a simples constatação clara do problema já traz em seu bojo a solução. Quando as coisas ainda estão emaranhadas, confusas, sem começo e sem final, temos a tendência de acreditar que os nossos problemas são muito maiores do que de fato são. Percebe-los corretamente é, sem dúvida alguma, o começo da solução.

E A PAZ DE DEUS – Junto ao alívio produzido pela descoberta do cerne da nossa angústia, vem também a constatação do lugar onde isso se deu. Aos pés do Senhor, cuja presença suave nos traz paz. Começo a entender que estar ao lado do Pai faz toda a diferença. “Tenho-vos dito essas coisas”, disse Jesus, “para que em mim tenhais paz”.

QUE EXCEDE A TODO ENTENDIMENTO – Talvez seja essa a razão porque tal paz excede a nossa capacidade de compreensão. É difícil compreender alguém que, em meio a grandes dificuldades e lutas, consegue manter um espírito sereno, um controle tranqüilo sobre as coisas. Extrapola a nossa compreensão tal comportamento.

GUARDARÁ OS VOSSOS CORAÇÕES – O rei Salomão nos ensina que é do coração que procedem as saídas da vida. Quando Paulo nos diz que a paz de Deus guardará os nossos corações, ele nos estimula a pensar nas atitudes refletidas, nos passos estudados sem precipitação e, consequentemente, nas escolhas feitas de uma forma madura. É difícil para alguém que tem o controle da situação, agir de forma desorientada, precipitada. Só dos mais alterados, nervosos e assustados é que esperamos tal atitude.

E OS VOSSOS SENTIMENTOS – Tão importante quanto fazer alguma coisa é por que fazer. Qual a real motivação que me faz escolher isto ou aquilo? Quais as intenções do meu coração quando optei por este caminho em detrimento daquele? Se eu de fato estiver em paz, não me pautarei por sentimentos revanchistas e vingativos. Não me deixarei adoecer por atitudes menores que o padrão adotado por mim. Meus sentimentos serão verdadeiros, autênticos e destituídos de rancor. Por quê?

EM CRISTO JESUS – Porque todas essas manifestações de paz em meu interior fluirão a partir de Cristo. Não há sombra em Jesus. Não é possível me aninhar em seu abraço de paz e tentar responder ao mundo com rancor. O caráter de Cristo é o grande alvo da minha caminhada de fé. É por isso que terei bem guardados o meu coração e os meus sentimentos nele.

Onde está aquela ansiedade que estava aqui?

domingo, 30 de março de 2008

Tributo a uma amiga!

As primeiras vezes de qualquer coisa costumam ser marcantes. O primeiro dentinho, os primeiros passos, as primeiras palavras, a primeira infância. Depois vem o primeiro dia de aula, as primeiras letras, as primeiras frases e, no meu caso, os primeiros cascudos das primeiras confusões em que me metia na escola.

Lembro-me da primeira suspensão que recebi, por subir com tênis e tudo na carteira, justamente quando queria pedir silêncio aos companheiros. Líder em crescimento, logo percebi o preço de tamanha ousadia. Foi no mesmo colégio em que resolvi ter a primeira briga por uma garota, que iria passar bem no local que escolhi para o embate. Tive que enrolar um pouco meu oponente, que não estava entendendo nada daquilo tudo. Só topou a briga porque era meu amigo e não queria me contrariar!

Quando a Vania chegou, me preparei para dar um soco no meu "ini"amigo que, ao perceber que eu não estava brincando, se esquivou rapidamente da direção do meu braço. Perdi o equilíbrio no cascalho sob o qual estávamos e caí vergonhosamente, a tempo ainda de perceber no canto dos lábios da garota um risinho constrangido.

A primeira vez que convidei uma garota para dançar foi no Rio de Janeiro. Festa no Morro da Pavuna, meus primos todos estavam lá. Era uma loirinha de uns seis ou sete anos. Eu tinha nove. Achei que sendo mais velho imporia assim uma reverência maior. A musica era do Michael Jackson: "Music and Me". Eu suava em bicas, sem qualquer controle nos pés que pareciam de um retardado. Pisei tanto nos pés da garota, que ela nem quis esperar o final da canção. Era a música ou o seu pé. Preferiu o pé.

Assim, as primeiras coisas vão se tornando significativas, talvez por representar avanço, crescimento, descoberta, aprendizado. Quando dirigi um carro a primeira vez, o primeiro verso, os primeiros acordes, o primeiro choro de amor, o primeiro beijo.

A primeira perda significativa veio de meu irmão, Alfeuzinho, vítima de sua segunda trombose. Morreu um dia antes do dia das mães, em Maio de Setenta e Oito. Sei disso porque o sepultamento seria no dia seguinte, dia da minha primeira apresentação em um teatro, com o grupo da escola de música de Brasília. Quando disse a todos que meu irmão iria ser sepultado naquela tarde, foi um choro geral e uma apresentação primorosa na quela manhã.

Mas, o que destampou essa caixa de lembranças das primeiras vezes de qualquer coisa? É que hoje eu comi o último pedaço do chocolate que me veio pelo correio, poucos dias atrás. Minha amiga Jeusa enviou pelo correio um caixa para mim, cheia dos mais variados tipos de chocolate. O que mais me encantou foi a delicadeza do presente, cheio de pequeniníssimos detalhes que, com certeza, demandaram um cuidado tremendo para chegarem inteiros em Floripa.

Foi a primeira vez que me senti assim tão especial, a ponto de alguém resolver fazer um mimo desta magnitude para mim. Foi especial, marcante, carinhoso e muito superior ao carinho que lhe fiz dias antes, cantando uma de minhas canções que lhe tocam o coração. Resolvi registrar, obedecendo a um desejo recente do meu coração, de não deixar passar despercebido qualquer demonstração de carinho que me for endereçado.

Obrigado, querida amida, por adoçar um pouco a minha vida e da minha família!

Com muito carinho e afeto para você!

PARA ENCERRAR O MÊS

TÂNIA LÚCIA
Allison da Silva Ambrósio

Pedalando na Avenida Beira Mar Norte, na linda e ensolarada manhã que se fez hoje na ilha, já estava retornando ao ponto de partida, quando observei do meu lado esquerdo uma exposição de veículos antigos. Havia vários Dodges, Mavericks, Dkws e fuscas, muitos deles. Dentre as muitas sensações que tive ao encontrar esses carros rigorosamente completos, como que desafiando o tempo, pude sentir minha ansiedade aumentando, depois de perceber que já havia andado na maioria deles!

Ainda bem que foi justamente quando estava me exercitando com a bicicleta, pois de outra forma eu teria uma sensação de dores por todo o corpo. Vi uma Rural 1964 que tinha as mesmas cores que um carro similar, dirigido por meu pai em certa ocasião, quando nos arrumamos à meia-noite e saímos em direção a estrada de Santos. Recém inaugurada, inclusive! Um Galaxie 500, também exposto ali me lembrou uma dessas noites preciosas quando, ao pegar uma boa estrada e sentir o desejo de pisar mais fundo, meu pai me “incumbiu” de acompanhar o avanço do velocímetro, enquanto ele testava os limites do veículo.

Seria a mais absoluta hipocrisia se eu quisesse aqui “pagar” uma lição de moral no velho, pois não me lembro de ter ficado tão excitado com uma infração como fiquei naquela noite. Aliás, nunca soube direito qual era a função de meu pai na Ford-Willis onde trabalhava. Só me lembro que de tempos em tempos ele aparecia em casa com um carro novo, que era devolvido no dia seguinte.

Mas, dentre todas essas lembranças que pipocavam em minha mente, indo e voltando, unindo meu passado ao meu presente e trazendo-me de presente novas lembranças, parei de repente, como que hipnotizado por ela, a grande dama da minha exposição – Tânia Lúcia.

Primeiro carro que pude chamar de meu, Tânia Lúcia era um Volkswagen TL (daí o apelido), bege, frente alta e bancos em forma de gomos, muito luxuosos para aquele tempo. Meu pai a havia comprado num daqueles negócios mirabolantes que só ele conseguia fazer. Sem nenhum problema aparente, tanto na máquina quanto na lataria, Tânia Lúcia logo passou a fazer parte do meu mundo, na melhor forma possível.

Veio com um toca-fitas que não tinha rádio, único exemplar que conheci em toda minha vida. Fui à discoteca 2001, no Conjunto CONIC, última loja antes de se chegar ao Setor Comercial Sul. Comprei as fitas dos grandes maestros: Paul Mauriat, Glenn Miller, Ray Connif, aproveitando alguns títulos que precisei pagar por ali, como funcionário da Check Mate Informática.

Morávamos em Valparaízo de Goiás, a cinqüenta quilômetros de Luziânia, na direção de Goiás e quarenta e dois na direção de Brasília. Portanto, apenas para ir e voltar do trabalho eu dirigia oitenta e quatro quilômetros todos os dias. Meu pai, com uma resistência igual à minha hoje quando o assunto é trajeto longo, dormia logo após eu ajustar a frente da Tânia Lúcia em direção à Estrada-Parque Taguatinga, roteiro obrigatório para voltarmos para casa.

Uns quilômetros mais adiante era o momento de eu pegar uma das minhas fitas cassetes. Éramos nós três – eu, Tânia Lúcia e o Glenn, Ray ou Paul, agora mais íntimos do que nunca. Aos primeiros acordes da orquestra e todo o cansaço do dia desaparecia como mágica. Tânia, solidária com meu sonho diminuía até o ronco de seu motor de mil e seiscentas cilindradas. Mal sabia ela que aquilo também era música aos meus ouvidos. Em um novo momento encantado, os lindos eucaliptos que ladeavam a estrada, perfumando a viagem de todos desapareciam. Via-me dirigindo nas auto-estradas européias, vendo castelos centenários onde havia somente árvores, pouco tempo antes.

Tânia Lúcia também sofrera uma revolução estética impressionante. Não era mais um Volkswagen mil, novecentos e setenta e três. Havia se transformado em um potente Porsche Carrera conversível, o deus sobre rodas daquele tempo. Glenn Miller continuava a jogar suas harmonias perfumadas de eucalipto, enquanto eu cortava o negrume da estrada em espírito e em verdade. Em espírito, nas estradas suíças, embevecido com os castelos que nunca visitei. Em verdade, na estrada-parque em direção ao Valparaízo de Goiás.

E meu pai? Meu pai, em meu devaneio semi-juvenil tinha se tornado em uma loura estonteante, de cabelos esvoaçantes e medidas generosas. Afinal, a Jackie ainda não existia em minha vida, além de nenhum Play-Boy sair por aí passeando com papai. Que outra atribuição poderia lhe dar em meu sonho? Porém, por questões mais que óbvias, nunca me senti a ponto de estacionar meu Porsche ao lado de um castelo e dar uns beijos na minha loura!

quarta-feira, 19 de março de 2008

DUÍLIA

Essa noite eu assisti a um filme rodado nos anos sessentas, baseado em um dos contos mais bonitos que já li: “Viajando nos Seios de Duília”. Acho que uma das coisas que tornou o texto mais significativo para mim foi estar com o Ricardo Gondim naquela tarde, num dos raros momentos de descontração que tivemos em Fortaleza, numa livraria do Iguatemi.

O texto se encontra na coleção “Os Cem Melhores Contos do Século”, ou algo assim. Fala de um homem, Sr. José Maria que, ao que tudo indica, estacionou todas as suas emoções em um singular momento de sua adolescência, quando foi procurar a garota por quem estava apaixonado havia muito tempo, contudo sem coragem de falar.

Seu pai recebeu uma nomeação do governo federal no Rio de Janeiro, que o chamava para assumir o trabalho em apenas dois dias. Portanto, Zequinha precisava encontrar Duília, seu amor de juventude para dar as duas notícias – a partida iminente daquele vilarejo onde moravam e a paixão que sentia. Para sua surpresa, ela também lhe confessou ser apaixonada por ele desde muito tempo, o que o sobressaltou em razão de só saber dessas coisas no tempo de ir embora.

Quarenta anos depois, o agora Sr.José Maria está aposentado, morando no Rio de Janeiro e muito infeliz. Descobriu que havia posto todas as suas energias no trabalho e não construiu família, amizades ou relacionamentos duradouros. Por causa de uma conversa informal em um velório, José Maria chega à conclusão de que se voltar a Pouso Triste, a cidadela de onde saiu e onde deixou o seu grande amor, provavelmente reencontraria a felicidade.

Desde a viagem em si até a chegada, não se faz necessário dizer que foi uma grande decepção o seu retorno. Apesar de nada ter mudado esteticamente falando – a cidadezinha ficava no interior mais remoto do Estado de Minas Gerais – o José Maria havia mudado. Lugares que pareciam enormes, agora para ele eram atravessados em poucas passadas. Rios caudalosos para um menino, não passavam de riachos frágeis e inofensivos para o homem que voltou.

Quando se aproximou de Duília, agora uma senhora de mais de sessenta anos de idade, viúva, três filhos, ao revelar finalmente quem era, fez com que a mulher se angustiasse e perguntasse decepcionada: “Por que você fez isso? Por que voltar no tempo, atrás de um passado que não existe mais, de uma pessoa que nunca mais será a mesma?”. Quando se deu conta dessa realidade, José Maria saiu da sala, caminhando como que sem rumo em direção à árvore onde deu seu primeiro e único beijo de amor.

O filme termina assim. Assim como a vida, que nem sempre segue um roteiro do Spielberg em seu final. Seca, fria e inexorável. “É a vida!”, multiplicam-se afirmações do tipo. Achei até melhor que nem o autor do conto e nem o roteirista do filme tivessem tentado dar um final plausível para o homem desesperado. Acho que seria a morte, mas, na idade em que se encontrava, talvez nem conseguisse voltar mais para o Rio de Janeiro.

Já voltei no tempo algumas vezes, revisitando lugares e reencontrando pessoas queridas. Em algumas delas chorei de emoção. Não sei se isto já um dispositivo de prevenção emocional da nossa própria mente, pressentindo a chegada da maturidade. Aí nos apegamos às curvas, alças e nós do passado, da nostalgia, como que querendo voltar no tempo, nem tanto pela experiência em si, mas para adiar a fila da partida eterna.

É quando os perfumes, os sabores, as cores e frases nos chegam com toque de eternidade. É quando nos encontramos a administrar medos jamais antes sentidos. E saímos correndo atrás das Duílias da nossa história. Ou dos Josés Marias, diriam as mulheres. E eles não estão mais lá. E as histórias não estão mais lá. Finalmente descobrimos que nós também não estamos mais.

quinta-feira, 13 de março de 2008

AUDÁCIA!

Todas as conquistas sublimes são mais ou menos prêmios de coragem. (...) O grito - audácia!- é um fiat lux. Para que o gênero humano marche sempre avante, é preciso que no horizonte, permanentemente, haja altivas lições de coragem. As temeridades deslumbram a história e constituem uma das grandes luzes do homem. A aurora, quando surge, é ousada. Tentar, desafiar, persistir, perseverar, ser fiel a si mesmo, agarrar o destino corpo a corpo, espantar a catástrofe pelo pouco medo que ela nos causa, afrontar às vezes o poder injusto, ou insultar a vitória ébria, resistir, perseverar; eis o exemplo necessário aos povos, eis a luz que os eletriza. O mesmo clarão formidável passa do facho de Prometeu à imprecação de Cambronne. (trecho de “Os Miseráveis”, de Victor Hugo – Ed. Cosac&Naify, livro II, pg. 33)

quarta-feira, 12 de março de 2008

O GRILO

Aprendi ainda menino essa poesia do Gioia Júnior. Até hoje me enternece. Quero dividi-la com você!

Numa noite clara, de lua redonda
Como um queijo branco no prato do céu
Do meio do mato uma voz ouvi
Que falava sempre:
Cri, cri, cri,cri,cri...

Estava sozinho, sem nenhum amigo
Com quem conversasse, então decidi:
Com o grilo alegre vou travar conversa
Ei grilo, não temas que eu não sou de briga
Creste no que eu disse?
E o grilo do escuro respondeu na hora, como se entendesse:
Cri, cri, cri, cri...

Fiquei muito alegre!
Ele me entendia e me respondia com satisfação
Pus-me a contar fatos que o deixaram quieto
Prestando atenção

Uma vez, amigo, veio ao mundo um homem
Muito meigo e puro, libertando a todos, saciando pobres
Homem tão bondoso como igual não vi
Creste no que eu disse?
Respondeu-me o grilo como se entendesse:
Cri, cri, cri, cri...

Pois o tal profeta (ele era profeta) dedicado e amigo
Recebeu dos homens o pior castigo que já conheci
Numa cruz pesada foi crucificado
Suas mãos sangraram rasgadas, feridas
Sua fronte clara foi lavada em sangue
Padeceu torturas como nunca vi
Creste no que eu disse?
Respondeu-me o grilo como se entendesse:
Cri... cri... cri... cri...

Mas, um dia, um belo dia de domingo
Esse homem puro que nenhum pecado no mundo provou
Rompeu as barreiras da morte gelada
E ressuscitou!
Seu corpo na pedra do frio sepulcro
Ninguém mais achou
Bom... Já se faz tarde. Vou dormir amigo
Mas... Ó? Companheiro? Tu creste de fato no que eu disse aqui?
Respondeu-me o grilo, como se entendesse:
CRI! CRI! CRI! CRI! CRI!
FELIZ ANIVERSÁRIO, PAI!
Allison da Silva Ambrósio

“A palavra foi dada ao homem para esconder o que pensa” Charles Maurice T. Perigord, Príncipe de Benevento (1754-1838)

Não sei ao certo o que eu esperava ao ligar. Desde uma semana antes já pensava nele insistentemente. De repente, a proximidade de seu aniversário me deixou inquieto e meio ansioso para lhe falar alguma coisa. Qualquer coisa, desde que conversássemos novamente. Passei o dia esperando um sinal interior que me liberaria para fazer o contato.

Liguei para o meu irmão mais novo, no Rio de Janeiro, com o intuito de conseguir algum número telefônico do meu pai, já que ele mudava muito e não tínhamos um contato freqüente. Aliás, não tínhamos contato algum. Essa também era uma das minhas queixas em relação a ele. Se eu não ligasse de vez em nunca, seria uma espécie de órfão com pai vivo.

A impressão que me vem, sempre que penso nisso é que ele desenvolveu um mecanismo interior que o libera de qualquer responsabilidade emocional com sua primeira família. Outras responsabilidades, tais como econômica, administrativa ou financeira há muito não esperamos dele. Se não existia tal compromisso enquanto dentro de casa, imagine fora e com outros filhos para sustentar?

Liguei para ele e quem atendeu foi o meu meio irmão, um garoto simpático e inteligente, que logo me reconheceu na ligação. Contou que todos haviam saído para um jantar de comemoração pelo aniversário do velho. Afinal, setenta e sete anos de idade merecem ser bem comemorados!

A chamá-lo para me atender, pude escutá-lo na extensão, se aproximando e falando alto, como que surpreso e feliz por eu ter ligado. “É o Allison? Não acredito! É o Allison mesmo?”. Em outros tempos eu cairia facilmente nessas suas introduções. Descobri com o tempo que isso faz parte de um formidável arsenal que ele construiu durante anos, com o propósito de escapar de uma situação constrangedora como, por exemplo, não ter uma explicação plausível para o seu completo silêncio em relação a mim.

A festa ao me atender é tão dissonante com a distância que tem havido entre nós, a ponto de me intrigar. Se ele fica mesmo tão feliz assim com minha ligação, porque não me ligou pelo menos uma vez nesses últimos dois anos? Aliás, foi até mesmo um alívio para o meu coração, quando me lembrei que não havia dois anos de silêncio. Numa das minhas carências do ano passado, liguei provavelmente no início do semestre, quando as minhas angústias se agravam mais. O assunto de hoje na ligação parecia o mesmo daquela ocasião, gêmeo uni vitelino de todos os assuntos de qualquer tempo.

Suportando a saraivada de perguntas iniciais que, como disse anteriormente, tem a propriedade de manter um papo por uns minutos a mais, depois que o felicitei pelo aniversário, desejando de coração que tivesse saúde para viver ainda por muito tempo, aquela ligação que tinha vida tão curta quanto as anteriores acabou por me surpreender. Houve um elemento novo. Um choro insistente de bebê ao fundo.

Antes que eu dissesse alguma coisa sobre isso, meu pai foi logo explicando que o “neném” estava chorando muito, comentário que me pareceu uma senha delicada para se encerrar nosso assunto. Se propositalmente ou não, me ouvi perguntando sobre o tal neném, não sei se para tentar estender mais o pouco contato ou simplesmente para satisfazer uma curiosidade repentina e urgente que surgiu em meu horizonte.

Ele me respondeu como que admirado de eu não saber ainda. Era o Daniel, seu terceiro filho do novo casamento. Como um flash acionado em algum ponto do salão, lembrei-me de alguma coisa que o meu irmão mais velho me havia falado nesse sentido. Disse-me que o pai estava adotando uma criança. Na ocasião achei tão improvável quanto banir a corrupção no Congresso através de Medida Provisória. Depois de onze filhos com minha mãe e mais dois com sua nova mulher, o que queria ele ao assumir mais um menino?

Um misto de surpresa aliada à revolta, indignação ou crítica tomou meu coração. Fiquei de tal forma que me ouvi perguntando segunda vez: “Como assim, mais um filho?”. Sua reação também foi por puro reflexo: “Ele iria morrer se a gente não acolhesse!”. “Mas, e a gente?”, pensei, “por que não nos acolher também? Por que, ao invés de adotar mais um, não cuida de alguns dos que já são seus?”, pensei outra vez. “Se pode investir em uma criança dos outros, por que não investir numa das que você mesmo pôs no mundo?”, pensei miseravelmente outra vez.

Um hiato, rápido e eterno. Talvez, os segundos que perdi em tantas perguntas interiores que, qual magma vulcânico agitava-se descontrolado no meu coração. Quis ser cruel e vomitar minha cólera repentina. Quis ser infantil, qual menino que deseja o mesmo carrinho que assistiu ao outro ganhar. Quis ser um moralista, que constrange a partir do próprio exemplo, mas, ao lembrar de mim mesmo e do esforço que faço para melhorar, achei melhor não correr o risco de ser um demagogo.

“Só liguei mesmo para saber se você está bem e com saúde. Feliz aniversário, pai”, falei metalicamente. “Obrigado meu filho”, ele me respondeu formalmente. Devo ter mandado um beijo ou coisa parecida, ao que ele provavelmente tenha devolvido. Desligamos. Minha filha surgiu no canto da sala, vindo em minha direção da forma que mais gosta ultimamente – fazendo estrelinhas. Contive o desejo de chorar, sem saber exatamente por quê. Ela veio e saltou perigosamente sobre mim, com o risco de se machucar. Dessa vez não briguei. Consegui segurá-la, apertando-a contra o meu peito sobressaltado.

Será que foi isso? Será que saltei também?
QUEM VAI CUIDAR DO QUEBRA-MAR?
Allison S. Ambrósio

Quem vai cuidar do quebra-mar quando explodir?
Quando não agüentar, não mais conciliar
Se não se conformar, não mais persuadir
Quem vai cuidar do quebra-mar quando explodir?

E quem vai seguir o quebra-mar quando fugir
E não mais tolerar a onda a se formar
Ou quando se cansar de tanto mar ouvir
Quem vai cuidar do quebra-mar quando fugir?

Quem vai conter o quebra-mar quando sorrir?
Não mais se interessar em razões procurar
E por não explicar, até se divertir
Quem vai chorar a dor do quebra-mar quando sorrir?

segunda-feira, 10 de março de 2008

TRAGÉDIA DA VIDA REAL
Allison da Silva Ambrósio

Depois de um dia quente e exaustivo de trabalho eu voltava para casa. Pude perceber, logo nos primeiros meses de minha nova moradia, que o bairro que escolhi é um dos bons e mais estratégicos da ilha de Florianópolis, Santa Catarina. A partir das facilidades, da proximidade da escola dos meninos, farmácias, supermercados e lazer, fiquei feliz com a decisão final que tomamos, eu e minha esposa, de nos mudar para lá.

Ao contrário do que nos haviam alertado, o povo catarinense se mostrou cordial e educado até mesmo nos detalhes. As faixas de pedestres nas ruas costumam ser observadas com respeito, o trânsito na maioria das vezes se apresenta calmo e, quando se sabe a hora certa, os carros transitam tranqüilos pelas pontes de acesso e saída da capital.

Quando viemos para Floripa, como é carinhosamente chamada pelos “manézinhos da ilha”, tínhamos no item segurança um dos principais fatores. O número de assassinatos no Estado é de quatro para cada cem mil habitantes. É o menor da nação que, por sua vez registra a média de vinte e três mortos por cada cem mil. Trafegar com os vidros do carro baixos para sentir a brisa era um deleite impraticável na cidade de onde viemos.

E assim, durante os onze primeiros meses da minha estada na cidade pensei ter descoberto um lugar, onde os poderes públicos funcionavam corretamente, as pessoas são pacientes e cordiais, contribuindo assim para a alta taxa de qualidade de vida deste quinhão da região sul. Recentemente foi divulgada a notícia de que Santa Catarina detêm os melhores índices de qualidade do ensino, além de ser o destino turístico número um em todo o Brasil.

Talvez, fosse até nisso que eu pensava ao voltar para casa naquele dia. Eram mais ou menos 18:00h. A avenida Almirante Lamego é uma das saídas em direção à ponte, por isso é um pouco congestionada nos horários de pico. Dirigi devagar o suficiente por ali, para notar uma cena esdrúxula: o latão de lixo de um dos requintados condomínios do bairro, emborcado sobre o que me pareciam pernas humanas.

Ao me aproximar e observar melhor, tive a certeza do que via. Havia um homem literalmente vestido com aquele latão, banhado dessa forma com os detritos fétidos que havia em seu interior. A julgar pela sua pasta executiva ao lado da lixeira, a qualidade do único sapato que lhe restava no pé e o tipo de roupa que vestia, este homem só deixava a todos os passantes a idéia de que havia surtado, perdido qualquer senso ou controle de suas faculdades mentais.

Estacionei meu carro na garagem do meu prédio e voltei até o lugar, após observar a chegada de uma rádio patrulha ao local. Alguém chamou a polícia, com o medo de aquele homem vir a tornar-se violento ou descontrolado. Na medida em que me aproximava novamente, eu o escutava gritar a todos que os queria longe dele, pelo menos uns cem metros. “Nem o governador eu quero aqui perto de mim!”, vociferava a todos, aquele senhor de aparentes sessenta e poucos anos.

Os policiais, ao contrário do que pensávamos inicialmente, apenas observavam de longe, interferindo eventualmente para facilitar o tráfego naquele ponto já tomado de curiosos – eu incluído. Trata-se de alguém severamente abalado, pensava com meus botões. Esse pensamento era compartilhado por todos, inclusive pela parente do homem, uma senhora gorda que procurava demovê-lo daquela situação.
De passos lentos, respiração difícil e um flagrante constrangimento no rosto, ela chegou a trazer um copo de água, provavelmente com açúcar, para tentar acalmá-lo e tirá-lo daquela situação vexatória. A cada investida da mulher igualmente idosa, a resposta do homem era comer daqueles restos de comida estragada, entre lamentos sobre a empresa que fizera a sua desgraça. “Você conhece a empresa tal? Foi ela que me colocou aqui!”, ele gritava, mergulhando novamente o rosto nos detritos.

Os soldados se comunicaram através de rádio, o que resultou na chegada de mais duas viaturas da polícia militar. Parecia relativamente simples o que precisava ser feito. Um homem claramente desequilibrado, de uma compleição absolutamente distante de parecer um Van Dame ou Rocky Balboa, o mais correto seria imobiliza-lo, impedindo-o de se ferir ou ferir outras pessoas ao redor, aguardando assim a ambulância que o levaria, pois o único destino plausível para ele era um hospital.

Enquanto ponderava sobre isso, ouvi ao longe o ruído da sirene de uma ambulância. Todos ao meu redor se alegraram aliviados. Mas, antes não tivessem vindo os para-médicos, pois seriam menos pessoas a assistirem o espetáculo de truculência e despreparo de homens públicos, cuja missão devia ser proteger e preservar a segurança dos cidadãos.

Num ato insano e descabido, ao sentir-se acuado pelos policiais, o homem começou a tentar acertar neles os restos da comida fétida que comia, dizendo que estava contaminada. Esse era todo o armamento que possuía para enfrentá-los. Num determinado momento, um policial jovem e bastante atlético, visivelmente irritado, desferiu-lhe um golpe que o fez cair com o rosto no cimento frio, na frente da farmácia, o lugar mais adequado ao tipo de socorro necessário àquela situação.

Uma vez que o homem fora derrubado, outros três policiais se aproximaram rapidamente e com tal ferocidade, que as pessoas presentes àquele espetáculo de horror gritaram, mais por desespero que por revolta, exigindo um tratamento no mínimo mais humano àquele homem. O que não aconteceu. Mesmo cruelmente algemado – seus braços foram puxados para trás com a clara intenção de produzir dor – e dominado pelos policiais, o mesmo soldado que o derrubou se conservava debruçado sobre a sua cabeça, enquanto pressionava o seu pescoço em um golpe chamado de “mata-leão”.

Vendo aquilo tudo, fazendo coro timidamente com alguns poucos que ousavam questionar os policiais, me senti um lixo pior que o que fora comido pelo homem, que agora se tornava três vezes vitima: vitima de um negócio mal feito, do descontrole experimentado em uma via publica e, o pior, vitima de pessoas que tinham por obrigação zelar por sua integridade.

Na mesma proporção da minha raiva, da minha indignação com aquela atitude troglodita de homens sem preparo adequado, surgiu em meu coração o medo de me envolver. Sim, de repente, me dei conta de toda a covardia que envolve até as pessoas que querem proclamar justiça. Pensei nos meus filhos e na possibilidade de os soldados se voltarem contra mim. Depois de pensar nisso, percebi que era geral o medo. Todos queriam impedir, porém, todos tinham algo a perder se insistissem na revolta.

Um senhor de idade avançada demonstrou mais coragem do que eu, quando foi censurar frontalmente a atitude do soldado infrator. “Vá até a delegacia e preste queixa, então!”, vociferou o soldado. “Vou sim!”, respondeu o ancião. E eu ali, paralisado de medo, enquanto minha mente desenvolvia os discursos mais inflamados e ameaçadores para serem ditos àqueles homens equivocados em sua profissão.

A viatura partir em alta velocidade. As pessoas se dispersaram tão rapidamente quanto à ambulância que fora acionada sem ser usada. A rua se esvaziou novamente, ficando apenas aquela mulher, parente da vítima, além de todo o lixo espalhado. Duas coisas me chamaram a atenção naquele quadro. O homem, que pensava estar ruim a sua situação, descobriu que até o que é ruim pode ser piorado. O lixo fétido, que jazia espalhado pela calcada nada mais era do que uma síntese infeliz de tudo o que os homens, em vida, ainda podem se transformar.

Lembrei de uma canção antiga do Silvio Brito: “pára o mundo, que eu quero descer!”.
Para os que não sabem ainda, Taguatinga é uma Cidade Satélite de Brasília. O Plano Piloto compreende o espaço entre as Asas Sul e Norte da cidade, construída em forma de avião. Daí a razão de as cidades circunvizinhas, ou os super bairros serem chamados de Cidades Satélites, tais como Gama, Sobradinho, Núcleo Bandeirante, Guará, etc. E ultimamente, o que mais tem surgido em Brasília é Cidade Satélite. Haja espaço!
TAGUATINGA PLANO PILOTO
Allison da Silva Ambrósio

O sonho de qualquer chefe de família é o de comprar a casa própria. Mansão ou quarto e sala, o importante é ter escritura e matrícula. Acho que esse sempre foi o desejo do meu pai. Tanto, que comprou a nossa casa em Taguatinga Norte, setor O. Era de longe o que havia de mais distante do Plano Piloto àquela época. Mas era próprio. Quase.

Que importava se eu precisava viajar quarenta e dois quilômetros todos os dias pra chegar ao trabalho? O pai estava feliz com sua casa própria. Quer dizer, com algumas “poucas” prestações a pagar, pelo BNH. Não dava pra voltar na hora do almoço. Quando saíamos pela manhã, só voltaríamos tarde da noite, após o período das aulas.

As casas eram tão pequenas no setor “O”, que o bairro foi apelidado carinhosamente como “Vila do Cachorro Sentado”, já que os pobres caninos de lá não conseguiam espaço suficiente para se deitarem para dormir na sala. Mas tínhamos três quartos. Imagine...

Foi por isso que, logo após começar a trabalhar em um famoso escritório de advocacia, precisei comprar uma boa marmita. Nas andanças de office-boy não teria problema para encontrar. Foi nas lojas americanas, no setor comercial sul. Enorme, precisei observar bem, antes de comprar. “Pega uns dois quilos, com certeza”, pensei. Comprei.

Minha mãe precisava levantar bem cedinho para preparar minha comida. O cardápio era tradicional. Quarenta e cinco por cento de feijão, mesma quantidade de arroz. O dízimo do espaço era preenchido por um ovo frito bem espalhado pela frigideira, para dar um apuro estético à superfície da marmita. Sempre a aconselhava fazer o feijão com bastante caldo.

Para não me atrasar, não poderia passar das 07h15min para sair do ponto de ônibus. Religioso, o carro Taguatinga - Plano Piloto passava pela gente naquela costumeira má vontade de atender aos menos favorecidos. Tinha a impressão de que, se não subisse logo no coletivo, eu ainda iria passar muita vergonha. Parecia até premonição.

Seis e meia da manhã. Levanto depressa, tomo banho e como um pãozinho economizado da noite anterior. Sinto o perfumado tempero do feijão da mãe, que já acomodou minha marmita em um saco plástico das Casas da Banha. Sete horas. Saio de casa feliz da vida. Apesar de todo o sufoco, sempre gostei das primeiras horas da manhã. São dez minutos até a parada. Não podia correr riscos desnecessários.

E lá vem ele. O motorista impaciente, que parecia esquecer de que endereço saiu para pegar o ônibus. Ainda tinha de acordar antes de mim. Não entendia por que tanta truculência. Entrei rapidamente e logo procurei os primeiros lugares. Tão importante quanto viajar sentado era conseguir sair depois que enchia. Preservando a integridade da marmita, é claro.

A viagem sempre era tranqüila no inicio. A coisa pegava um pouco somente quando chegávamos à Ceilândia, cidade-satélite que, desde cedo, parecia vocacionada à violência. Mas nunca àquela hora. É sempre assim: noventa e nove por cento das pessoas de uma cidade são trabalhadores honestos, cumpridores de seus deveres. Mas, é necessário somente um por cento de gente sem-vergonha, de marginal, de bêbados para que todo mundo seja tachado de vagabundo. Na Ceilândia tem muito trabalhador. E como tem! E todos trabalham no mesmo horário. E pegam o mesmo ônibus. O meu.

Vencida essa etapa, era hora de enfrentar o trânsito da estrada-parque Taguatinga, ponto de ligação com o Plano Piloto. Passávamos pela entrada do Guará, setor de mansões Park-Way, setor de Indústria e Abastecimento. Após intermináveis paradas ali, enfrentávamos a saída sul, que dava para o Núcleo Bandeirante, setor gráfico, palácio da justiça e eixo monumental. Ao dobrar à direita na avenida W-3 sul, eu descia no primeiro ponto. Setor Comercial Sul. Edifício Presidente, sexto andar.

Todo santo dia, o mesmo ritual. A mesma lotação, os mesmos rostos e os mesmos cheiros. Inclusive o da marmita. Em cardápio que está ganhando não se mexe. Pelo menos voluntariamente.

Estava viajando como de costume numa daquelas manhãs. Já havíamos passado da Ceilândia, quase chegando à entrada do Guará. O coletivo foi diminuindo, diminuindo até parar no acostamento. O que mais aterroriza o trabalhador brasileiro é tomar um ônibus que resolve quebrar bem longe do seu destino. Não adiantou minha vantagem em subir antes de encher.

O pior de um ônibus quebrado é o próximo que chega! Se o primeiro já vem lotado, imagine como ficará o segundo? E ali todos estavam atrasados, desejosos de entrar em um espaço improvável, de tão compactado que estava pelos solavancos e chacoalhadas. Começaria assim um desagravo à lei da física. Dois corpos conseguem ocupar o mesmo lugar no espaço. Pelo menos dentro do Taguatinga – Plano Piloto II!

Tudo o que consegui foi um pequeno espaço para pôr o pé esquerdo no primeiro degrau. Todo resto estava tomado de pessoas que se acotovelavam, tentando uma melhor posição. Sorte eu ser canhoto, pois somente com a mão esquerda também foi que encontrei algo em que me segurar dentro do ônibus. Se o motorista do primeiro era truculento, acho que aprendeu com o motorista do segundo que, de quebra tentava observar o mesmo tempo da viagem anterior.

A cada aumento na aceleração meu coração acelerava também. Era como se ele nos culpasse pelo mau estado de conservação daqueles veículos. Não havia ninguém para explicar que éramos as maiores vitimas de tudo aquilo. O Guará está chegando... Uma senhora gorda resolveu melhorar sua posição no grid. E tome espalhar gente pela minúscula porta do coletivo. As pontas dos meus dedos estavam rosadas, devido ao sangue que rareava ali por causa da pressão. A próxima parada estava chegando...

Tentei encurvar ao máximo o meu corpo para trás, numa tentativa desesperada de conseguir um contrapeso à freada que viria logo a seguir. A mão se encontrava dormente de tanta força que lhe era exigida. O motorista começou a domar a fera... Outra multidão esperava para entrar – os que perderam o primeiro e os costumeiros do segundo. O homem meteu o pé no freio, como se quisesse reproduzir uma cena dos velozes e furiosos, desafio em Tóquio!

Foi o momento da minha marmita se revelar ao mundo. Por mais força que empreendi para me manter no ônibus, a pressão foi grande demais para alguém apoiado apenas com um pé, enquanto o outro descrevia a postura do National Kid, em seu melhor desempenho. Só que, ao invés de uma pistola de luz, minha mão direita segurava a marmita medonha que eu comprei nas lojas Americanas. Com a freada, senti meus dedos se abrirem com a facilidade de uma represa que rompe a barreira.
Por um momento me senti o super homem, voando na direção de todo o cascalho que antecedia a parada do ônibus. Foi uma aterrisagem de barriga digna das reprises do Fantástico. Um verdadeiro Show da Vida. Minha marmita se abriu, sociabilizando o feijão com muito caldo que, apesar de espargido sobre os pobres trabalhadores, não perdeu seu aroma inconfundível. O arroz já tinha deixado o ninho muito antes, indo parar espalhado nas plantas atrás da parada.

O ovo finalmente encontrou sua vocação para transporte alienígena. Saiu voando à minha revelia, em direção à árvore mais próxima. Ralei a barriga, os cotovelos, as coxas e algumas falanges das mãos, enquanto percebia o êxtase da audiência a me ovacionar pelo show! “Vai, idiota! Pegue carona outra vez!” e coisas do gênero que se faziam ouvir tanto dentro como fora do coletivo. E aquele almoço estava prometendo tanto...


domingo, 9 de março de 2008

11 de Julho de 2007, Vinte anos depois...
Para Jackie Kauffman, meu grande e precioso amor. . .


Quando a gente quis, eu tinha pouco mais de vinte anos
Decisão feliz, tantos projetos e com tantos planos
Nada impediria o nosso sonho, nada nos faria recuar
Mesmo o apartamento tão minúsculo que a gente foi morar

Começou então uma louca e mágica jornada
Quanta emoção a gente ajuntou pela estrada
O primeiro carro que a gente comprou, a primeira briga que a gente brigou
Os primeiros gestos de perdão que nem me lembro quem iniciou

E assim o tempo foi passando e nos tangendo pela estrada
Rindo de nós mesmos ou gemendo por alguma coisa errada
Quantas vezes a gente se amou, noutras tantas que se perdoou
E, se percebendo indispensável, continuamos a jornada

Hoje, vinte anos é somente o tempo que estamos juntos
Mais bonitos, bem mais conscientes, mais charmosos, mais adultos
Três lindos motivos para celebrar, entendendo a força desse nosso lar
Celebrando diante dos céus a estirpe desse nosso amor

Amor é mais fácil de sentir quando a razão
Anda par e passo com o coração
Não nos deixa parar nem nos deixa correr
Amor, pelos erros que eu cometi, peço perdão
Pelo amor que cultivamos, minha oração
Prometo ainda mais te amar e proteger
O SALVADOR DO MUNDO
Allison da Silva Ambrósio

Não raro, sinto em meu coração um desejo inexplicável de sair solucionando os problemas de todas as pessoas ao meu redor. Imagino-me perguntando a um: “quanto você está devendo?”, e a outro: “você já falou para ela o quanto a ama? É só isso que ela está esperando de você”.

Lembro-me de tantas vezes que desejei, quando em um velório, tocar suavemente as gélidas mãos do defunto, esperando fluir de mim uma carga extraordinária de poder e sopro de vida. Afora algumas velhinhas que em meus devaneios não suportariam tal visão, o resultado seria fantástico. Para o Reino de Deus, é claro! Ok: sobraria alguma pequena glória para mim também.

Mas, por que essa sanha de tornar-me o salvador do mundo? Por que eu, inclusive? Essa mania perversa de querer consertar as coisas e pessoas ao meu redor, tendo sempre a última palavra e a última sugestão sobre tudo. Essa forma parcial de querer ver resolvidas as coisas sempre a meu favor. Essa impaciência em ter que escutar os argumentos do outro e, pior de tudo, quando tenho de admitir que são melhores que os meus.

Por que ser salvador do mundo, se nem mesmo meu mundo eu consigo organizar direito? De onde surge esse desejo de, como diz o sertanejo nordestino, “dar pitaco” na vida alheia, me ofendendo, inclusive, quando minhas sábias ponderações não são recebidas assim, com ações de graças?

Por que ser salvador do mundo, se encontro o meu próprio mundo sistematicamente burlado por minha visão míope da vida. Se meus desejos aflorados tendem a querer suplantar minha razão, fazendo-me vitima de meus próprios instintos. Por que eu? Tal qual o personagem de Robert Duval, no filme “O Apóstolo”, quero entrar no primeiro rio que encontrar e, com uma pequena cuia, me auto-consagrar apóstolo, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ainda que essas três pessoas santas não fossem sequer convidadas para o ato.

Talvez, por uma necessidade de aceitação. A melhor forma de se tornar necessário é tendo o que doar, com o que contribuir. Principalmente em um mundo utilitário, como se tornou o nosso, quem estiver disposto a dar de si mesmo e, melhor ainda, daquilo que tem granjeado ao longo do tempo, com certeza corre o sério risco de ser aceito.

Em busca de aceitação, sou capaz de dizer sim, mesmo que todo o resto do meu corpo esteja gritando não. Para ouvir um pequeno elogio, sou capaz de me expor até o limite do ridículo, se necessário. Salvador do mundo é apreciado por todos. Uma unanimidade. Que seria de Gottan City sem Batman e Robin? E do planeta diário sem o Super Homem? Até o ranzinza do JJ Jamenson, apesar da ira contra o Homem Aranha concorda que a cidade precisa de um super herói.

Mas, quão bom seria se eu fosse apenas eu mesmo. Suportasse me olhar no espelho, contentando-me com a visão. Esse eu autêntico, jamais escondido sob qualquer manto, seja de pureza ou de perversão. Esse eu menino, medroso, inseguro que, apesar de mim, ainda consegue se perceber puro.

Quão bom seria se eu não acreditasse nesse estereótipo criado sobre o meu chassi, que me exige determinado comportamento, ou alguma ação adequada ao meu papel social. Que bom seria ser somente aquilo que posso perceber na solidão da busca que inicio para dentro de mim mesmo.

Por que ser salvador do mundo, se não consigo salvar a mim mesmo? Salvador do meu mundo, talvez? O grande libertador da minha alma sensual e perigosa? A grossa mão que me agarra pelo braço, no meio das ondas famintas da existência, lançando-me como uma folha outonal em direção à areia? Que bom se eu conseguisse ser, tão somente, o salvador do meu mundo...

Salvador de mim mesmo.
No Banco da Praia
Allison da Silva Ambrósio

Eu estava exausto. Após doze quilômetros de corrida pelo calçadão, até mesmo as poucas passadas pareciam eternas. Era o momento de me alongar. As dores seriam menores se assim o fizesse. Ela estava sentada no banco a uns poucos metros de meu lugar de exercícios. Nada no rosto que me dissesse sobre dor ou prazer. Apenas olhava.

Bem vestida, cinqüenta e cinco anos aproximadamente. Cabelos bem arrumados, ainda que eriçados pelo vento sul. Revezava o olhar entre a placidez do mar floripano, sempre calmo em função das montanhas que o subjugam e eu. Daí meu desconforto. Fingi não notar, enquanto flexionava o antebraço esquerdo, para não precisar olhar para ela.

Às vezes me ocorrem tais esquisitices. Parece que me intimido com pessoas absolutamente inofensivas. É assim quando uma criança pequena resolve me encarar. Talvez, em função de sua pureza me sinta desconfortável. Ou então por causa da curiosidade excessiva dos pequenos. Dizem que os idosos vivem a segunda infância. Quem sabe? Aquela mulher no banco estava uma séria candidata a bebê.
PALAVRA DE REI -
Allison da Silva Ambrósio – 21/11/07

Não diz que vai pra não ir
Nem que virá pra não vir
Não diz que faz sem querer, sem curtir

Não diz que está tudo bem
Se está por dentro ruim
Só ofereça o que tem
E já está bom assim

A vida é curta demais
Pra gente ter que fingir
Fazendo uma força louca
Para não explodir

Segura a onda rapaz
E as conseqüências que houver
Escolha com atenção
E seja o que Deus quiser

sábado, 8 de março de 2008

A MULHER E SEU DIA

A MULHER E SEU DIA
Allison da Silva Ambrósio

Hoje comemoramos o dia internacional da mulher. Como todas as datas consideradas importantes pela sociedade mundial, a mulher ganhou o seu dia com sangue. Conta-se de uma, ou algumas operárias que, ao reivindicar os seus direitos foram mortas, no dia 8 de março de há muito tempo atrás, quase no início do século passado.
Interessante a conexão. O espaço cedido após o sangue derramado. O reconhecimento que surge da vida que fora subtraída pela impiedade e ganância humanas. Dizer então "Feliz Dia da Mulher" seria, no melhor dos desejos, um pedido para que isso nunca mais ocorra. Que elas não precisem chorar para ter seus direitos preservados. Que não tenham que implorar para ter sua integridade garantida ou sua dignidade respeitada.
O dia internacional da mulher nada mais é que um momento de parada, de reflexão, para que não mais seja esquecida a interdependência que há entre o macho que lhe cede a semente e a fêmea que a incuba. Não pode haver desrespeito do homem que saiu de seu ventre, nem tampouco da mulher que surge de sua semente. É para que se compense sempre, anualmente, todas as agressões históricas que já lhe foram feitas, transforamando assim um dia de luto em um tempo de reconhecimento e gratidão.
A mão que balança o berço tem hoje o dia de ser embalada. O peito que abriga o primeiro alimento tem reconhecido nesse dia o seu direito à felicidade e contentamento. Hoje é dia de agrados e mimos, de afagos e palavras ternas, de romantismo e agradecimento. Pelas noites mal dormidas velando o sono, seja do filho gripado ou do marido adoentado. Pelas Marias da Penha, Cláudias Lessim, Ana Lídias Braga e tantas outras. Pelos carinhos nem sempre pedidos, embora abundantes. Pela constante negação de si mesma, primeiro para o homem que ama, depois para o filho que gera, para somente depois de todos pensar em si.
O dia internacional da mulher é um constrangimento necessário. Se nossas mentes embotadas se esquecem sistematicamente dessas que se tornam leoas assassinas, quando para defender suas crias, ou então frágeis e perfumadas rosas ao mendigar um pequeno carinho, torna-se necessário inventar um dia, estabelecer uma data, forçar um evento que nos lembre, que nos chacoalhe do torpor, do corre-corre, da busca egoísta dos nossos próprios interesses sempre perenes, para saudar uma vencedora, uma sonhadora, uma rocha titânica que se transmuta em uma manteiga derretida. Uma romântica incorrigível, que consegue ser ao mesmo tempo detentora de uma inteligência concreta, calibrada, antenada com seu tempo. Uma gigante de modos suaves, que atende pelo doce e enigmático nome de mulher. A todas elas, minha reverência e sincera celebração.

"Os Miseráveis"

Se existe algo terrível, se existe alguma realidade que ultrapasse os sonhos, é esta: viver, ver o sol, estar emplena posse da força vivril, ter saúde e alegria, rir com audácia, correr em direção a uma glória que está ali mesmo, resplandecente, sentir no peito um pulmão que respira, um coração que palpita, uma vontade que raciocina, flar, pensar, esperar, amar, ter mãe, ter mulher, ter filhos, ter luz, e, de repente, sem tempo para dar um grito, em menos de um minuto, mergulhar num abismo, cair, rolar, esmagar, ser esmagado, ver espigas de trigo, flores, folha, ramos sem poder agarra-se a nada, possuir um sabre inútil, sentir corpos triturados e o peso dos cavalos, debater-se em vão, com os ossos esmigalhados por um coice, sentir um sapato que faz saltar os olhos, morder com raiva os ferros das montarias, asfixiar-se, berrar, torcer-se, estar lá embaixo, e dizer: - Agora mesmo eu vivia! (trecho do livro "Os Miseráveis", de Victor Hugo, quando os soldados de Napoleão foram dizimados na Batalha de Waterloo. Ed. Cosac & Naify, São Paulo,2002 - pag. 329)

sexta-feira, 7 de março de 2008

MEU PAPEL É MEU ESPAÇO


Meu Papel é Meu Espaço
Allison da Silva Ambrósio


Meu papel é o meu espaço. Meu lugar recluso, tranqüilo. Posso fugir para cá quantas vezes quiser. Aqui sou rei e dono absoluto. Não tenho que dar explicações ou justificativas para ninguém, a não ser a mim mesmo.

Aqui padeço das minhas dores de amores. Aqui desfruto meus prazeres solitários e interiores. Consigo atingir aquele ponto alto que meus braços não alcançam, além de caminhar sobre as ondas furiosas e gigantes que arremetem contra a praia.

Meu papel é meu espaço de sonhos. Não reage aos meus impulsos juvenis repentinos e nem critica os meus arroubos de idealista. Apenas recebe. Recebe-me com as tintas que irão tingir sua superfície, dando forma a brinquedos, personagens e dramas que nada mais são do que reflexos da minha alma complicada e romântica.

Meu papel é meu espaço de luta, de oposição a essa realidade que tenta me roubar o devaneio, a fala fácil, a ilógica com que tento me distrair da realidade. Aqui eu falo mal, grito, choro e rio, não necessariamente nessa ordem, pois, o que há de mais excitante no meu papel é justamente não ter regras.

Ou então criá-las com o propósito objetivo de podê-las quebrar sem culpa e sem peso! Que bom é ter um papel só para mim. Para mim e os muitos “eus” que desenvolvo nesse mundo maluco que me habita. Onde a resposta está na ponta da língua, imediatamente após o agravo. A raiva é plenamente compensada com o xingamento que as convenções sociais inibem. A morte é resposta pronta à injustiça.

Meu papel é meu espaço compartilhado. Reparto apenas com os que são meus. Não dou pérolas a porcos. Àqueles que apreciam minha arte, dou de bom grado alguns lampejos de minha própria vida. Minha enigmática vida que, ora correndo, ora se arrastando, insiste teimosamente em me fazer voltar sempre ao meu pedaço de papel.

DIRETO DO MEU TEMPO DE MENINO

Direto do meu tempo de menino
Allison da Silva Ambrósio

Quando a composição do metrô parou na estação Pavuna, última do itinerário, meu coração disparava descompassado. Subindo escadarias, dividindo espaços entre pessoas apressadas, muitas delas, bancas de frutas ou bugigangas, a marca indelével de que eu estava subindo o morro – um calor sufocante.

Meu irmão ainda bambeou quanto ao lugar que, como por encanto me surgiu à mente: Rua Capitão Gouveia, a rua do meu avô Albertino José da Silva e minha avó Julieta Peçanha da Silva. “O senhor dobra na próxima à direita e pode subir uma ou duas ruas. Uma delas é a Capitão Gouveia!”, me disse uma voz esparramada e cordial de um carioca da gema, esforçando-se para criar um mapa apenas dos movimentos das mãos.

Cada passo em direção a casa aumentava um desejo incompreensível de chorar e rir. Era como entrar em um túnel do tempo, observando ruas agora asfaltadas, nas quais corri atrás das pipas perdidas pelas linhas com serol. Tentava lembrar onde era a casa da tia Nadir, esposa do Tio Eunésimo, um tio mais afastado do convívio dos demais, embora igualmente querido.

Foi meu irmão que encontrou a casa. Ou melhor, as várias casas construídas naquele endereço. Um garoto bonito, cabelo bem cortado e aparado quase artisticamente ia saindo lá de dentro. “Oi, você mora aqui?”, “sim”, “estou procurando a casa do Edgard, você conhece”, “conheço, é meu tio”, “então, você é meu primo!”, “sou?”, “é! Como é seu nome?”, “Clayton”, “você é filho de quem?”, “do Seu Ronaldo”, “da Rosangela?”, “é sim!”, “Conheci teu pai quando ele ainda namorava tua mãe!”, “é mesmo?”, “onde ela está? Ela está em casa?”, “está sim! Vou só prender o cachorro”.

Pouco tempo depois surge uma mulher com os olhos bem abertos, como que tendo uma visão. Abraços e beijos carregados de emoção e saudade, fotos antigas e novas, telefonemas para os demais que não seriam alcançados pessoalmente e, como num flash back, voltei trinta ou trinta e cinco anos pelo menos no tempo. Soube dos que morreram e dos que teimaram em continuar. Vi primos, antes esquálidos e pequenos, agora gordos e ostentando cabeças prateadas e muitas marcas de expressão.

O choro é inevitável. Mais beijos e abraços. Mais lembranças gostosas de serem vividas. Sair de lá e voltar para o lugar onde a minha mulher me aguardava para almoçar foi algo suave e marcado pela ternura. De um lugar castigado pelo caos da violência urbana, pelo despreparo dos governantes e pela falta de políticas sociais mais justas, consegui encontrar um oásis de paz e alegria, nas lembranças do meu tempo de menino.